Já somos um país fascista

“Já somos um país fascista, você não percebeu?” – comenta Capitão Von Trapp, no quarto ato da montagem original de “A Noviça Rebelde”, no Schubert’s Theatre, em Boston.

O patriarca, a família e o público haviam acabado de saber, com supressa e horror, que o simpático e leve carteiro que paquerava Liesl, a filha mais velha dos irmãos Von Trapp, havia aderido ao nazismo, e agora, arma de fogo na mão, ameaçava abater a tiros todos os heróis, todos os seus ex-amigos, incluindo o próprio amor da sua vida.

Todos haviam, no primeiro ato do musical, cantado junto a inesquecível e solar “Sixteen on Seventeen” dueto entre os dois jovens interrompido por uma trovoada e um temporal. Nuvens não vistas no horizonte. Todos, agora, pensavam: como um garoto tão gente boa foi se tornar um adorador de Hitler?

A história da Noviça Rebelde, todo mundo sabe, é real. Situada na Áustria de 1938, um país a beira de ser conquistado por Hitler, nos ensina, no fim das contas, como um país se torna fascista sem perceber.

Mais que isso: como as pessoas se tornam fascistas convictas que estão do lado do bem. E de como ditaduras se instalam em silêncio, sem disparar um tiro, e aplaudidas pela população convertida.

O povo austríaco era reconhecido então como um povo alegre, doce, que adorava música. Quase todos, de camponeses a a barões, passando, claro, por noviças e freiras, sabiam tocar um instrumento. Pacifistas, porque o rescaldo da queda do império Austro-Húngaro.

Pós 1a guerra mundial e crash 1929, veio a crise econômica. Com a crise, o desemprego. Com o desemprego, a corrupção. E a consequente procura de culpados externos e soluções rápidas e messiânicas.

Os culpados escolhidos para serem odiados foram comunistas e judeus.

A solução rápida e messiânica veio com Hitler, militar que havia lutado na guerra e que prometia acabar com a corrupção, com os comunistas, os judeus, e com “o ciclo vicioso da política”. Por fim, valorizar a família, a propriedade e “homem de bem”, o “ariano puro”.

A indústria, na figura de seus patrões, começou a chantagear seus empregados. “Ou vocês aderem a Hitler ou o país afunda e seremos obrigados a demitir vocês todos”. Muitas das marcas de carro e roupa que consumimos hoje, na época chegaram a obrigar seus funcionários a usar a famigerada braçadeira com a suástica.

Os jovens, sem perspectiva de emprego e encantados com o discurso de “Tornar a Alemanha grande de novo”, de aos 17 anos ganhar do governo uma arma de fogo para caçar “cidadãos que não respeitam a bandeira nacional”, aderiram imediatamente.

Pronto. A elite e agora os pobres se uniram. Os inimigos da nação, da pureza, da moral e bons costumes passaram rapidamente a ser, além de judeus e comunistas, gays, ciganos e pessoas portadoras de necessidades especiais.

E da noite pro dia, o espírito inteiro de uma nação passa a ser orientado pelo ódio. Pessoas doces, gente boa, que frequentavam sua casa, se divertiam e não se metiam na vida de ninguém, se transformaram em nazistas.

Os poucos Austríacos que não foram enfeitiçados pelo fascismo, não perceberam, mas já estavam vivendo em uma sociedade fascista, quando Hitler finalmente invadiu o país sob aplausos de multidões.

Agora já era tarde. Mesmo que o Fuhrer desistisse da Áustria, ela já havia se transformado em uma nação de fascistas. Aquele povo alegre havia se transformado no povo que odeia. Mesmo que Hitler recuasse, o país já estava perdido sua identidade. Já estava conquistado. E, otimista, achando tudo normal.

Democraticamente, a Áustria, então, tornou-se, uma ditadura fascista.

Em 2018, faz 80 anos da anexação da Áustria pelo Terceiro Reich.

Um exemplo de como um povo inteiro se torna fascista, sem perceber.

Um exemplo de que o verdadeiro amor de nossa vida é o poder em subjugar o outro.

Por Dodô Azevedo, G1