A resistência dos professores

Corria o ano de 1988. Depois de duas décadas de silêncio, o Brasil ouvia o barulho das mobilizações populares, com os diversos setores organizados em torno do debate constitucional. Naqueles dias de efervescência política, trabalhadores da educação iniciaram a luta pela inclusão na nova Constituição, promulgada em outubro, do Fórum Nacional da Educação, espaço permanente de diálogo entre a sociedade e o governo.
O FNE só sairia do papel 22 anos depois, em 2010, durante o segundo governo Lula, com a realização da primeira Conferência Nacional de Educação. Durou pouco. Depois do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o debate público foi ignorado e prevaleceu unicamente o interesse dos empresários do setor.
Assim, Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, resume o processo que culminou na Conferência Nacional Popular realizada entre 24 e 26 de maio em Belo Horizonte, com o intuito de retomar aquela agenda que enchia de esperança o Brasil recém-saído da ditadura. A pauta continua a mesma: uma participação coletiva em defesa do ensino público gratuito e de qualidade para todos.
Do encontro, que reuniu diversas entidades profissionais da educação e 4,3 mil participantes durante os três dias, brotaram as diretrizes para a elaboração de um manifesto, batizado de “Carta de Belo Horizonte”. Trata-se de uma tentativa de influenciar o debate eleitoral.
“Havia uma lei que previa uma conferência nacional a cada quatro anos. Depois de muito protelar, o novo governo mudou o decreto de convocação da conferência. Reduziram drasticamente a participação da sociedade civil, de 42 para 18 entidades, e aumentaram o número de representantes do Ministério da Educação, que passou a ter maioria, uma aberração”, descreve Araújo. “Entramos com várias ações contra essa medida e não conseguimos derrubar. Então decidimos romper a farsa e criar o Fórum Nacional Popular de Educação para a convocação da Conape.”
Um pilar sustentou o debate nas diversas mesas que ocuparam o pavilhão de exposições do Parque da Gameleira, tradicional espaço de feiras na capital mineira: a volta ao caminho da democracia. Ou “o déficit democrático”, como definiu Gilson Reis, coordenador da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino.
Segundo ele, estava claro para os mais de 4 mil participantes, representando entidades regionais, estaduais e nacionais de ensino, que um dos principais focos do golpe foi intervir na educação, com um conjunto de medidas para desmontar o ensino público. “Todas as reformas apresentadas até agora apontam nesta direção, da alienação de recursos à articulação com setores fundamentalistas, como o Escola Sem Partido, levando para a sala de aula um debate autoritário.”
Entre os assuntos da extensa pauta estava a PEC 95, ou 241, a depender da casa legislativa, considerada gatilho para a desarticulação em processo. A chamada “PEC do Teto de Gastos” estabeleceu um novo regime fiscal ao congelar os gastos do governo federal por 20 anos.
Com isso, conforme acreditam os organizadores da conferência, inviabiliza-se a principal conquista da organização popular em 2010, o Plano Nacional de Educação.
Aprovado pelo Congresso Nacional em 2014, o PNE traça 20 metas, entre elas, a universalização do ensino infantil e médio e o plano de carreira para os professores da rede pública. Estava previsto ainda o aumento gradativo dos investimentos em educação em proporção do PIB, com a meta de 10% em 2020.
Na contramão do que se pretendia, as matrículas do ensino médio tiveram queda de 2,5% no ano passado. Cerca de 1,5 milhão de jovens de 15 a 17 anos estão fora da escola, segundo o Censo de Educação Básica de 2017. “Na prática o orçamento foi dividido em duas partes: metade para as políticas públicas e metade para a rolagem da dívida. Isso implica uma redução dramática dos recursos para a educação, inviabilizando completamente as metas, uma conquista histórica nossa”, ressalta Reis.
A reforma do ensino médio, acrescenta, vem em segundo lugar no hall das questões que afligem a categoria, um retrocesso que divide os estudantes entre aqueles que vão ter acesso a “um ensino propedêutico” e aqueles que vão ter acesso a “um ensino técnico de baixa qualidade”: “Foi uma reforma curricular sem debate, feita de cima a baixo, estávamos discutindo há oito anos”, avaliou.
Sob a torrente histórica de ocupações das escolas públicas pelos estudantes, o Senado aprovou, em fevereiro do ano passado, a Medida Provisória 746, mais conhecida como a (contra) reforma do ensino médio. Entre as medidas mais controversas consta a flexibilização do conteúdo, retirando a obrigatoriedade de quatro disciplinas: filosofia, sociologia, artes e educação física.
Outro ponto é a abertura da brecha ao ensino online. O governo chegou a cogitar a liberação de até 40% da carga horária total do ensino médio na modalidade de educação a distância, inclusive em plataformas privadas.
“Em 2016, todos os brasileiros de 4 a 17 anos deveriam estar matriculados. Chegamos em 2018 com 3,2 milhões fora da escola e temos 80 milhões de adultos que não concluíram a educação básica”, resume Araújo. “Para economizar, o governo federal mudou a base nacional curricular, autorizando os estados a aplicar parte do orçamento em ensino a distância.”
O cenário é realmente desalentador. O orçamento do Ministério da Educação para 2018 repete, praticamente, o valor do ano anterior: 107,5 bilhões de reais. O Congresso Nacional chegou a aprovar um recurso adicional de 1,5 bilhão de reais ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, mas este foi o único item vetado por Temer ao sancionar a Lei Anual Orçamentária no início do ano.
Ao circular entre as mesas de debate durante a conferência, Nilton Ferreira Brandão, professor do Instituto Federal do Paraná e presidente da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico, chamava atenção para a tragédia das universidades públicas.
De acordo com ele, para entender o ocaso é preciso voltar a 2003, quando o presidente Lula assumiu o governo e criou o Reuni, o programa de apoio a planos de reestruturação e expansão das universidades federais.
Instituído em 2007, o Reuni criou 132 novos campi e 18 novas universidades. Apenas entre 2005 e 2009, o número de matrículas nas federais aumentou 30%. O total de institutos saltou de 152, incluídos as escolas técnicas, escolas de aplicação das universidades e os Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet), no governo FHC, para 640 no primeiro mandato de Dilma.
“Houve uma profícua consolidação, com um processo de investimentos e expansão. Tudo tem sido descontinuado, e esse movimento coloca em risco esse legado. Nas universidades, o orçamento caiu de aproximadamente 13 bilhões, em 2015, para 5,9 bilhões de reais, em 2018. Nos institutos federais, a queda foi de 7,9 bilhões para 2,8 bilhões”, compara Brandão. “Em 2006, fizemos um debate sobre a carência de técnicos no Brasil. O País precisava, então, de cerca de 6 milhões de técnicos. A criação dos institutos federais multicampi, um por estado, foi um grande passo na democratização da educação.”
Segundo Brandão, o desmantelamento das universidades públicas é uma obra em progresso: “Não tem dinheiro. Pense em instituições jovens, com cursos em criação, que levariam anos para se consolidar. Na prática, essa política inviabiliza o ensino público. A meta do governo golpista, aliás, é só essa, basta olhar os investimentos”.
A Conape começou com uma marcha entre duas praças, da Liberdade e da Estação, dois palcos tradicionais de manifestações populares em BH. O evento de abertura contou com a presença de Dilma Rousseff. Os resultados da conferência foram sintetizados em um documento denominado “Plano de Luta”, com 14 tópicos que conduziram os debates. Além disso, a “Carta de Belo Horizonte”, em fase final de elaboração, será distribuída a eleitores e enviada aos candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais.
“Essa foi a ‘Conferência da Resistência”, com a efetiva participação social. O fórum era um sonho desde a Constituição de 1988. Conquistamos este espaço. O golpe nos atingiu em cheio”, arremata Araújo.
(da Carta Capital)