Artigo: "O que incomoda a elite brasileira? As cotas em debate", por Cristino C. Rocha
Em 2011, em uma cidade do interior de goiás, escutei uma pessoa usar a seguinte expressão inconformada: “hoje em dia até pobre tem carro”. Essa afirmação carregada de preconceito de classe social revela um pouco do perfil de uma classe média/alta e/ou dos pretensos, por haver aqueles/as que ao ter um fusca, aluguel em bairro nobre e um emprego fixo dizer “sou classe média/alta” e ainda há quem tem dois palmos de terra, uma vaca, um bode, bate no peito e diz “sou fazendeiro”.
A elite/burguesia nacional brasileira tem seu repertório ideológico em lugares concretos. Estão enraizados na colônia (com seus feitores, senhor do engenho, forma de organização socioeconômica de exploração…); no sistema escravocrata (proprietário de pessoas a serem escravizadas, luxo a partir do sofrimento alheio…) e na ditadura militar (democracia sequestrada, silenciamento de vozes, rua como propriedade da elite e seu aparato militar…). É a partir desse cenário que o discurso da elite toma corpo e se transforma em práticas sociais opressivas em sociedades contemporâneas.
A expressão estereotipada possui seus significados, entre os quais que só os ricos deveriam ter carro. Denota também que desde 2002 até hoje, em que pese a crise ético-política e financeira, as camadas populares tiveram acesso a uma vida mais digna nunca experimentada nos governos anteriores, não podendo apenas ter carro, mas também acesso à formação superior, a viajar de avião, casa própria etc. Esse tipo de política incomoda os que sempre estiveram por cima, alimentados pela dor humana. Os ricos pretendem diferentes a partir da produção das desigualdades multifacetadas.
Uma constatação acoplada a expressão estereotipada “hoje em dia até pobre tem carro” sinaliza o que proponho a contribuir no debate sobre a relação entre educação pública como direito, a questão das cotas nas Universidades públicas e o que incomoda a elite/burguesia nacional brasileira contemporânea: direitos não são oportunidades, dádivas, ação benevolente dos ricos nem méritos. Direitos, portanto, se constituem como para além das cotas por serem amplos e transcendem qualquer ação afirmativa de níveis institucionais. Quero dizer com isso que direitos humanos não estejam atrelados unicamente às cotas, nem às ações afirmativas, nem às leis, embora essas dimensões façam parte dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana.
Trata-se de um debate que leva em consideração a questão da demanda por reconhecimento com o teor posto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Culturas Afro-Brasileira e Africana2:
A demanda da comunidade afro-brasileira (classe popular em geral, grifo meu) por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas (MEC/SEPPIR, 2004:11).
Reconhecimento tem implicações e perspectivas distintas de oportunidades, dádivas, ação benevolente e méritos. Diante de direitos inalienáveis se faz escolha de qual posicionamento: pela via das migalhas (oportunidade, dádivas, benevolência e mérito) ou pela via da garantia de direitos (reconhecimento e respeito). Ainda nesta contribuição, as Diretrizes apontam várias faces do reconhecimento, o que adoto duas de igual importância:
Reconhecimento requer a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico – racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino. Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual (MEC/SEPPIR, 2004:13).
As contribuições das Diretrizes faz pensar no que vem ocorrendo com a discussão em torno das cotas para negros/as nas universidade públicas brasileiras e às discussões sobre a recente divulgação de resultados do PAS em que estudantes da rede pública do Distrito Federal obtiveram aprovação significativa no conjunto das vagas na Universidade de Brasília. O contributo específico das Diretrizes (questão racial) se estende às questões de classe social, de gênero e outras correlatas, dada a abrangência e complexidade dos discursos em torno das cotas e o sutil e mesmo escancarado ataque à garantia de direitos fundamentais da pessoa humana.
Nesta perspectiva, ao falar de cotas para negros nas Universidade públicas e cotas sociais para procedentes de camadas populares empobrecidas, abrangendo classe social, ambos historicamente excluídos e marginalizados por pessoas e instituições, cabe dizer que cotas são necessárias e direitos de inclusão, dada trajetória de vida de milhares de pessoas que foram e continuam sendo vítimas de todo tipo de violência, inclusive da midiática que tem prestado um desserviço às camadas populares, com raras exceções. Trata-se de devolução do que fora subtraído e não ação caritativa de instituições e pessoas.
É importante compreender o que está em risco ao lidar com discursos e práticas sociais, na particularidade do que se reacendeu como campo de disputa: garantia de direitos humanos. Precisamos ter o cuidado para não resvalar na vala comum do discurso simplista e simplificador em torno das cotas sociais e raciais nas Universidades públicas. As cotas são pontas do iceberg. Uma pergunta precisa ser discutida: O que de fato a elite brasileira rejeita e se incomoda? José Carvalho3 traz para o debate a intranquilidade da elite branca da universidade em relação às cotas raciais:
As cotas já assaltam de tal modo a intranquilidade da elite branca da universidade que não podemos deter o ímpeto da discussão por causa da reação da academia à possibilidade da inclusão racial. Mais ainda, sustento que só conseguiremos entender porque há tão poucos negros na universidade hoje se analisarmos a pirâmide do mundo acadêmico pelo topo e não só pela base (Carvalho, 2004:03).
A reação inicial da academia em relação às cotas para negros tem sua extensão na reação de outros grupos e pessoas que se incomodam quando diante da possibilidade de compartilhar direitos com camadas populares. O caso do discurso de Alexandre Garcia (DFTV de 14/01/2016) é emblemático de uma postura que tende a privilegiar a elite em detrimento das camadas populares. Ele representa o ideário de uma sociedade organizada para a elite/burguesia, por isso ser coerente seu discurso contra cotas e a inserção de estudantes da escola pública na UnB.
Em outra passagem Carvalho (idem, 2004:14) evidencia a meta das ações afirmativas que põe em cheque a elite/burguesia que se pretende hegemônica em todas as esferas da vida humana: “A meta das ações afirmativas em discussão é deselitizar radicalmente o ensino superior público e com isso demandar da universidade pública um retorno à função social, desvirtuada há muito pela sua hegemonia de classe, (de etnia/raça e gênero, grifo meu).
Obviamente não é tarefa fácil deselitizar o ensino superior público, mas creio ser possível, na medida em que for crescendo posturas humanitárias de luta pela inclusão negra e de outros segmentos sociais nas esteira de José Jorge, Rita Laura Segato e outros comprometidos com a luta por direitos reconhecidos.
Está posto concretamente que a elite brasileira não rejeita o acesso de camadas populares à educação. Ela rechaça o tipo de educação, a que promove emancipação, libertação e acesso a direitos, sendo a própria educação um dos direitos.
A burguesia/elite aceita tranquilamente que camadas populares tenham acesso a uma educação para servi-la; uma educação que transforme o sujeito em subserviente, com obediência servil e submetido aos ditames do que a elite decide. Não é bom e aceitável para a elite/burguesia um acesso amplo e qualitativo, que promova lucidez diante dos acontecimentos locais, nacionais e de mundo; mobilidade socioeconômica, política e cultural etc.
Nesse patamar de compreensão, a educação pensada pela elite para as camadas populares é basicamente a de acesso mínimo e de qualidade restrita, apenas para garantir pão e circo. O circo é montado por grandes emissoras de televisão, inclusive pelo que se usa metaforicamente como REDE BOBO4.
Ao que a elite/burguesia teme, há elementos concretos que servem para uma análise, mais do que informação já feita por emissoras televisivas que não se preocupam com a reflexividade, porque vender notícias seja mais rentável, principalmente a que mais veda os olhos e amortece a consciência crítica.
A elite/burguesia teme e rejeita uma ação que qualifica o estudante da escola pública para a inclusão sem ranqueamento e sem meritocracia. Teme e rejeita a valorização e respeito do magistério público, daí o ataque à escola pública, aos professores/as e estudantes, sendo o ataque a direitos a chave de leitura importante que se deve fazer ao lidar com pessoas e instituições que tentam desqualificar e desvirtuar a importância dos serviços públicos. Portanto, o ponto nevrálgico não são cotas, mas direitos amplos que vem sendo atacados.
Há um temor e rejeição da elite/burguesia da democratização dos direitos historicamente privilégios de um grupo. O ideário privatista de direitos está escancarado em ideologias contrárias ao público, ao exercício da cidadania e à dignidade humana como direitos. Muitas das ideologias são repletas de estereotipias e preconceitos, seja pela grande mídia, seja no cotidiano que reproduz o modo de ser da elite. O discurso contra contas propalado por qualquer pessoa não tem força política no contexto de uma luta pela dignidade humana, dignidade que só será possível na medida em que houver direitos compartilhados e não privatizados.
O grande temor e rejeição da elite/burguesia é que os empobrecidos, na maioria negra, mulheres e nações indígenas atinjam um patamar de vida digna em pé de igualdade. Não admitem que esses segmentos tenham uma qualidade de vida igual ao que os burgueses sempre tiveram e têm. Por essa razão, atacam os meios que conduzem a essa possibilidade de inclusão e garantia de direitos, a educação pública, laica, democrática e qualitativa do ponto de vista sociocultural, técnico e político. Esses temores e rejeições são as mesmas que se processam em outras dimensões. Compartilho algumas para o debate.
A elite/burguesia sente incomodada com a ascensão e empoderamento das mulheres, fruto da luta ininterrupta de mulheres e homens engajados no mesmo ideário. A elite ultraconservadora e em certa medida neofascista, neo-escravocrata e neo-colonizadora não admite a inserção da mulher em espaços econômicos, políticos e culturais de grande alcance social, de modo particular em relação à mulher negra, maior vítima no que tange ao corte de etnia/raça e gênero. Maria Júlia é caso emblemático, jornalista que foi duramente agredida em rede social na condição de profissional negra em 2015. A maneira como a elite brasileira trata a presidenta Dilma Rousseff demonstra a articulação do tripé intolerância, intransigência e machismo. O desrespeito para com Dilma perpetrado pela elite brasileira não tem nada a ver com a democracia. Trata-se de uma violência contra a mulher.
A elite/burguesia rejeita o acesso de negros/as e camadas populares empobrecidas às universidade públicas por serem meios de acesso a um possível rompimento com a exclusão socioeconômica e educacional. Fazer chacota em rede televisiva pelo fato de estudantes da escola pública entrar na UnB faz parte de um ideário maior do que a chacota e o ataque às cotas: ataque aos direitos fundamentais da pessoa humana, inclusive o de acesso a uma educação qualitativa técnica, social e política. Há clivagem de etnia/raça, classe social e gênero na disputa por direitos. Os que são contra cotas desejam perpetuar as relações desiguais de etnia/raça, gênero e classe social.
Os burgueses sempre tiveram dificuldade de lidar com direitos compartilhados. É mais cômodo o direito privatizado, em que um pequeno grupo faça jus a todas as benesses e a maioria viva das migalhas que caem debaixo da mesa da elite/burguesia. E muitos senhores/as de determinadas redes televisivas cumprem bem o papel de agentes do capital, do mercado, porque não são donos das emissoras, apenas trabalham em favor do patrão e veiculam uma ideologia que favorece uma elite midiática e governos atrelados aos interesses dominantes da grande mídia.
Nesse sentido, a elite/burguesia sente incomodada e rejeita qualquer avanço trabalhista (PEC das domésticas, aumento salarial dos trabalhadores/as…). O caso mais recente (final de 2015) do acesso dos trabalhadores/as a um aumento salarial nunca visto na história de governabilidade brasileira anterior aos anos 2002-2010, passando de 788,00 para 880,00, salto quantitativo significativo em termos históricos.
A elite/burguesia sempre temeu e teme um governo que não teme nem rejeita o lado dos empobrecidos. A grande luta de hoje é contra a burguesia/elite que usa todos os meios para impedir o exercício das camadas populares dos direitos fundamentais. O inimigo da classe trabalhadora tem nome: elite/burguesia que não aceita compartilhar direitos e não escondem esse ideário: está explícito no próprio discurso.
A elite/burguesia sente incomodada com a camada popular viajando de avião, basta dar uma olhada nos olhares, redundância pequena ante o olhar que denuncia preconceito. Por muito tempo e ainda hoje se adota a ideia do “não posso ter os mesmos hábitos dos pobres” e mais “eles, os pobres, são muito diferentes de nós ricos”. Sabem ou não sabem os ricos que são sustentados pelo trabalho e carências dos trabalhadores/as empobrecidos? Sabem ou não sabem que a opulência de um pequeno grupo reflete no sofrimento da maioria? O afastamento do lugar dos empobrecidos faz da elite/burguesia uma ilha com acesso ao luxo e nas circunvizinhanças está o empobrecido, no mundo do lixo produzido pela própria elite/burguesia.
A elite/burguesia sente incomoda e rejeita uma educação libertadora e emancipatória, o que decorre acreditar que “Paulo Freire” e outras referências instigadoras do pensamento que medita, produz e analisa sejam esquecidos e retirados do contexto educativo. Um sinal desse modo de rejeitar é o PL nº 01/2015 intitulado de “Escola sem Partido” de Sandra Faraj na condição de Deputada Distrital e que está posto em nível Federal com o mesmo teor, o PL nº 867/2015, que tramita na Câmara Federal, de autoria do Deputado Izalci. Paradoxalmente os que propõem “escola sem partido” possuem um partido enquanto sigla e enquanto postura ideológica.
Os PLs em evidência objetivam submeter profissionais de educação e estudantes aos ditames de uma pedagogia positivista, ultraconservadora e tecnicista, amordaçando sujeitos de direitos dentro e fora da escola, com a finalidade de manter o status quo da elite/burguesia que trata a dimensão pública como posse, degrada e argumenta a necessidade de privatizá-la.
Enfim, a elite/burguesia sente incomodada e rejeita o acesso de estudantes da rede pública de ensino a um patamar de direitos, entre os quais a universidade pública de qualidade técnica, política e sociocultural. Há algo que não se pode deixar de perceber: a grande mídia articulada com a elite/burguesia, sendo a própria mídia burguesa está se sentindo cada vez mais incomodada com uma escola pública que por muito tempo tem sido invisibilizada em seus feitos e que se desponta como afronta a uma elite individualista, enquanto as privadas divulgavam uma falsa qualidade. E creiam: a elite/burguesia capitaneada pelo capital e pela grande mídia não se curvarão diante do ideário da democratização de direitos que passam pela educação pública como um dos meios de consolidação de direitos e como direito… A disputa de ideários se aprofunda em nossa realidade brasileira contemporânea… Desafio constante para sindicatos, CUT, categorias, lideranças religiosas e políticas comprometidas e engajadas, movimentos sociais…
Cristino Cesário Rocha
Taguatinga Norte-DF, 18 de janeiro de 2016.
1 Cristino Cesário Rocha é professor de rede pública de ensino do Distrito Federal. Formação filosófico-teológica e Especialização em Gestão da Educação; Culturas Negras no Atlântico: história da África e afro-brasileiros; Educação na Diversidade e Cidadania com ênfase na Educação de Jovens e Adultos e Educação, Democracia e Gestão Escolar.
2 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana é um marco político importante na luta antirracista com maior envergadura no governo federal brasileiro entre 2002 e 2010. A referida diretriz ajuda no entendimento de conceitos e práticas sociais que afetam negros e negras no Brasil atual, cuja relatora do material sistematizado foi Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Brasília, 10 de março de 2004.
3 José Jorge de Carvalho é Antropólogo, do Departamento de Antropologia da UnB, criou o sistema de Cotas na UnB. Seu artigo “as ações afirmativas como resposta ao racismo acadêmico e seu impacto nas ciências sociais brasileiras” traz uma reflexão sobre as condições reais do povo negro brasileiro e as cotas como possibilidades de inclusão. disponível em http://www.redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br/uploads/ufscar_artigo_2003_JJdeCarvalho.pdf acessado em 18 de janeiro de 2016.
4 Rede Bobo é usado por críticos da TV Globo que consideram esse meio de comunicação um desserviço para a população. Programas e notícias não ajudam no despertar de uma consciência crítico-criativa.