Escalada da militarização silencia vozes e ameaça democracia nas escolas

O controle autoritário do ensino por meio da militarização das escolas é um fenômeno global. Em El Salvador, por exemplo, o governo de direita Nayib Bukele nomeou a capitã Karla Trigueros para ser a nova ministra da Educação. Como consequência, foi imposta uma série de regras sobre a aparência dos estudantes, violando direitos básicos como a dignidade, a liberdade de expressão, a diversidade cultural e a gestão democrática.

O caso reacende o debate sobre até que ponto pode chegar a interferência militar na construção de um projeto pedagógico e traz um alerta sobre o avanço do modelo compartilhado de gestão de escolas no Distrito Federal e no Brasil.

 

Michael Melo/Metrópoles
A militarização foi vendida como uma solução para problemas de segurança, disciplina e desempenho escolar, mas se mostrou um projeto que não deu certo Foto: Michael Melo/Metrópoles

 

Vendida como uma solução para problemas de segurança, disciplina e desempenho escolar, a militarização das escolas teve considerável expansão nacional a partir de 2019, no governo Bolsonaro, com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). Segundo reportagem do portal Uol, em 2018, o país tinha 230 escolas militarizadas. Em 2024, o número já passava de 790.

No DF, a gestão cívico-militar foi implementada em 2019 de forma unilateral — via decreto do governador Ibaneis Rocha, sem qualquer debate com a comunidade escolar ou com o Sinpro. À época, após comunidades escolares de duas escolas públicas rejeitarem a militarização por meio de votação, o governador chegou a afirmar: “Quem governa sou eu. Os que estiverem insatisfeitos com a gestão compartilhada busquem a Justiça”. A escalada continuou nos últimos anos, e atualmente a capital federal conta com mais de 20 unidades escolares militarizadas.

Ilegalidade

Desde o início do avanço da gestão compartilhada com militares, o Sinpro, organizações da sociedade civil e, inclusive, órgãos públicos têm denunciado os problemas e inconsistências jurídicas do programa.

Em 2022, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) revogou a nota técnica que considerava legal a implementação da militarização das escolas no DF. Para o MPDFT, o modelo fere direitos constitucionais, como o princípio da dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. O documento do órgão também aponta ausência de dados que comprovem o sucesso da proposta de militarização das escolas públicas.

 

A militarização das escolas criou uma concepção de educação voltada à repressão. Foto: Tony Oliveira/Agência Brasília

 

Mais recentemente, em julho de 2025, o Comitê dos Direitos da Criança (CDC) da Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou que o Brasil adote as medidas necessárias para reverter e proibir a militarização das escolas públicas em todos os estados e municípios brasileiros. A orientação corrobora a defesa do Sinpro por uma escola como espaço de respeito à liberdade, ao pluralismo de ideias, às concepções pedagógicas e à gestão democrática.

“A militarização tem se mostrado um modelo autoritário que compromete a gestão democrática e tolhe a liberdade de expressão dos estudantes. Não se trata apenas de disciplina: é um controle rígido sobre toda a vida escolar, que impacta professores, alunos e toda a comunidade. O debate sobre educação precisa ser construído coletivamente, e não imposto de cima para baixo”, disse a diretora do Sinpro Márcia Gilda.

Projeto que não deu certo

Um dos principais argumentos levantados em defesa das escolas militarizadas é a suposta melhoria no desempenho das unidades em que o modelo de gestão foi imposto e a queda nos índices de violência. O discurso falacioso busca ganhar apoio da sociedade e de educadores(as), simplificando questões complexas da educação e ignorando as reais necessidades das comunidades escolares.

Para o diretor do Sinpro Júlio Barros, os resultados positivos, quando existentes, são decorrentes de uma situação privilegiada das escolas cívico-militares em detrimento das demais unidades escolares da rede distrital.

“A educação pública no DF conta com profissionais mais qualificados e preparados para promover a educação dos estudantes. São profissionais com plenas condições de lidar com as questões pedagógicas. Se as demais escolas públicas tivessem essas mesmas condições que as escolas militarizadas, seria possível alcançar resultados ainda melhores, com equidade e respeito à gestão democrática”, disse o sindicalista.

A hipotética redução da violência nos arredores das escolas militarizadas também não reflete a realidade. Em abril deste ano, por exemplo, um estudante foi esfaqueado dentro da Escola Cívico-Militar 02 de Brazlândia.

 

A militarização compromete a gestão democrática das escolas. Foto: Donavan Sampaio

 

Dados da Secretaria de Segurança Pública do DF apontam que, de 2019 a 2022, aumentou a sensação de insegurança tanto nas imediações das escolas militarizadas como dentro das unidades escolares.

“Após seis anos de implementação da militarização das escolas públicas, não há resultados que sustentem a manutenção do sistema. O Sinpro entende que a militarização não pode ser a resposta de um governo para os problemas da educação pública, como disciplina, evasão, violência, infraestrutura, qualidade de ensino e outros. A solução para essas questões passa inevitavelmente por mais investimentos nas políticas públicas educacionais”, disse o diretor Júlio Barros.

Pedagogia do medo

Durante pesquisa para o trabalho de pós-graduação e mestrado, o professor Amaral Rodrigues entrevistou 17 docentes que atuam ou atuaram em escolas militarizadas no DF, para entender o contexto em que se deu a implementação do modelo, a aceitação da comunidade escolar e outros indicadores.

Segundo os relatos dos(as) professores(as), criou-se uma concepção de educação voltada à repressão, em que o medo oportuniza a obediência irrestrita, sem espaço para o contraditório. As entrevistas também apontam que o ambiente com gestão militar favorece o ensino disciplinar e hierarquizado, sem promover uma educação libertadora e inclusiva, com estímulo à reflexão crítica.

Leia o estudo aqui.

Respaldando os depoimentos dos(as) entrevistados(as), reportagem do G1 deste ano aponta que durante troca de mensagens por aplicativo, estudantes da escola militarizada Centro Educacional 01 do Itapoã denunciaram violência física e psicológica no ambiente escolar. As conversas revelam que uma aluna chegou a ser chamada de “vagabunda” por um policial.

“Na prática, a militarização é o único projeto que o governo Ibaneis apresentou para as escolas. Sem construção de novas escolas, sem respeitar estratégia de matrícula e superlotando salas, sem enviar financiamento com o PDAF, sem respeitar o próprio currículo em movimento, Plano Distrital de Educação e Lei de Gestão Democrática”, disse Mônica Caldeira.

Para a diretora do Sinpro, são muitas as ausências do GDF na educação pública. “O GDF só está presente nas fardas, nas armas na cintura e nos coturnos. O GDF opta por enfrentar as reais necessidades da educação pública impondo um modelo de controle e repressão em que estudantes e professores são submetidos a violência estatal, física e psicológica, sem espaço para direitos pedagógicos e formação crítica emancipadora”, denuncia.