O que dizem professores da EJA sobre a interdisciplinaridade

Este artigo traz como objetivo realizar uma discussão a respeito do que dizem os professores(as) da educação de jovens e adultos sobre a interdisciplinaridade, bem como apreender usos e sentidos para além das práticas pedagógicas, de modo a identificar e analisar a práxis dessa forma de conhecimento em seu contexto. A pesquisa tem uma abordagem qualitativa, e usou como técnicas de produção de dados, entrevistas e observação, tanto em sala de aula quanto em coordenações pedagógicas e questionário socioeconômico no ambiente escolar de uma escola pública do Distrito Federal. A conclusão aponta para a possibilidade interdisciplinar na Educação de Jovens e Adultos, ressaltando que apesar dos entraves do sistema do capital, a educação crítico-reflexiva de cunho libertador é um dos passos significativos para o enfrentamento da estrutura do capital e, consequentemente, de promoção de uma nova sociedade.

Confira o artigo na íntegra:

A discussão em torno da palavra interdisciplinaridade tem seu contorno para além da prática pedagógica, do plano epistemológico e de uma preocupação crítica do modo de operar de cada disciplina, porque possui, em sua base, estreita ligação com cenários sociais, políticos, econômicos e éticos do conhecimento. Dito de outro modo, a elaboração e difusão do conhecimento ocorrem em um mundo global e complexo em mudança, o que torna inviável saberes descolados da articulação local/global.

O dinamismo histórico-cultural, político e das ideias, tem recolocado questões importantes para o campo da educação, muito particularmente às práticas pedagógicas e às instituições. Professores/as são, nesse contexto, alvos de todo tipo de ataques e também agentes de mudança. As instituições públicas, por sua vez, são reduzidas a uma
funcionalidade do capital, através de ações de governos que instrumentalizam o espaço público a serviço de interesses dominantes e colocam em crise a democracia e a cidadania ativas, enquanto exercício.

A realidade brasileira que se reconfigurou com a imposição jurídico-política da saída de Dilma Rousseff da presidência, e pós-eleição de 2018 com um modo de governar desumano para camadas populares, e o atrelamento ao governo estadunidense (Donald Trump), tem, de certa forma, colocado em risco a soberania nacional, a democracia, os direitos humanos, o trabalho e os/as trabalhadores/as, a diversidade cultural, religiosa e humana, etc. Em um contexto de acirramento das tensões sociais e de grave crise econômica e política, observa-se um retrocesso nas políticas educacionais com impacto significativo no financiamento da educação e na permanência de políticas públicas voltadas à garantia do acesso, permanência e do direito à educação.

Diante de um mundo em mudança, local e global, há que se fazer a discussão sobre a prática pedagógica para além da sala de aula. Essa urgência de reflexividade se dimensiona no tipo de prática, se é puramente disciplinar, em que opera a lógica da especialização; se é interdisciplinar, ou no nível da utopia, transdisciplinar. Observa-se de um lado, uma ciência que subtrai e simplifica a interdisciplinaridade, e até a rebaixa ao nível do “sem importância”, por outro lado há a emergência de um movimento histórico-cultural, político e econômico que problematiza em sua base: qual a sua significação dentro e fora da escola?

Ao pensar a interdisciplinaridade como um modo de produzir conhecimento, na dialogia teórico-prática, emerge uma percepção ampliada: não é somente a ausência de interdisciplinaridade que leva ao individualismo e à fronteira de poder na ordem disciplinar, mas, ao contrário, o modo de fazer política e de produzir a existência são vetores de
individualismo, relações assimétricas de poder e produção de exclusão em massa.

O que se pode pensar, no nível mais global, planetário, é que práticas pedagógicas
interdisciplinares dependem, a rigor, de cenários favoráveis de um lado, e que não podem
tudo em termo de transformação socioeconômica. Isso indica que há o que fazer, em sentido
pedagógico, para colaborar na transformação do mundo, mas não podemos nos limitar ao
nível desse fazer, pois a realidade humana exige algo maior: romper com a relação de
opressão perpetrada pelo capital global/local. Fronteiras disciplinares, nesse sentido, são,
antes, fronteiras do capital.

No Brasil, em plena ascensão do conservadorismo nas instituições públicas e privadas,
em que a democracia e o exercício da cidadania têm sido vítimas, a interdisciplinaridade
como práxis transformadora emerge como contraponto às decisões unilaterais, autoritárias e
antidemocráticas de governos, tais como a Base Nacional Curricular Comum, a militarização
das escolas públicas, o Programa Escola Sem Partido, a Reforma do Ensino Médio, dentre
outras práticas que se constituem expressões de uma ação institucional que mutila a
democracia participativa e faz o investimento no ideário conservador fortalecer o status quo
dominante-dirigente.

A violência de nível planetário, global, tem a mesma intensidade do propósito
capitalista globalizado: atinge localidades, nações e o mundo. Em que a educação, e
particularmente a prática interdisciplinar pode contribuir no sentido de transformar a realidade
desumana e em situação de violência? O que pode e o que não está ao seu alcance?

A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade educativa que possui
características peculiares, que envolvem seus sujeitos e práticas. Os sujeitos que integram esta
modalidade são, em grande parte, formados por pessoas pertencentes a coletivos sociais
historicamente marginalizados, tais como população do campo e de periferias urbanas,
mulheres e homens negros, quilombolas, pessoas em situação de rua ou privadas de liberdade,
etc. Em meio a toda essa diversidade, todos possuem algo em comum: não tiveram o direito
de acesso e permanência na escola, seja na infância ou na juventude. Considerando a
pluralidade que caracteriza os sujeitos da EJA, propostas pedagógicas e curriculares precisam
ser pensadas no quadro de concepções voltadas à formação humana que contemplem suas
subjetividades, seus processos de formação histórico-sociais, no sentido de atender e se
adequar às necessidades desse público. É mister repensar formatos, metodologias e práticas,
além de garantir uma formação adequada e continuada aos profissionais que nela atuam.

As concepções de professores/as, e, sem dúvida, suas práticas pedagógicas no âmbito
de atuação na Educação de Jovens e Adultos sobre a interdisciplinaridade, possuem um valor
singular no contexto da educação básica pública em todos os entes federados. Portanto, trazer
à baila os entendimentos conceituais, as práticas, intenções, possibilidades e entraves sobre a
interdisciplinaridade na Educação de Jovens e Adultos pode favorecer um maior engajamento
qualitativo nesta modalidade. Nesse sentido, este artigo busca trazer esta contribuição ao
realizar uma discussão a respeito do que dizem os professores/as da educação de jovens e
adultos sobre a interdisciplinaridade, bem como apreender usos e sentidos para além das
práticas pedagógicas, de modo a identificar e analisar a práxis dessa forma de conhecimento
em seu contexto.

A investigação adotou uma abordagem qualitativa, e usou como técnicas de produção
de dados entrevistas e observação, tanto em sala de aula quanto em coordenações pedagógicas
no ambiente escolar público de uma escola do Distrito Federal nos anos de 2016 e 2017.
Participaram do estudo 19 professores da EJA, dos quais 8 concederam entrevistas com maior
densidade. O tempo de atuação do professor/a faz parte de um perfil pessoal, identificando-se
uma diversidade no que tange ao tempo de exercício na Secretaria de Estado de Educação do
Distrito Federal (SEDF): entre 1-5 anos (5,263%); 6-10 anos (26,316%); 11-15 (15,790%);
16-20 (5,263%) e 21-30 (47,368%). O quantitativo indica que há professores/as mais
velhos/as na SEDF na escola pesquisada.

Ressaltamos que trazemos para este artigo recorte desta pesquisa mais ampla,
revelando as vozes de duas professoras da educação de jovens e adultos, o que dizem e
pensam acerca da interdisciplinaridade. Fazemos esta opção, no intuito de trazer o
aprofundamento das vozes e sentidos atribuídos às práticas pedagógicas, considerando o fato
de serem professoras da rede pública, concursadas na área e com experiência ampla na
educação e na escola investigada. No tocante aos aspectos éticos, as entrevistas foram
autorizadas pelas professoras a serem publicados neste artigo, preservando-se o anonimato
dos sujeitos.

O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira parte, propomos uma reflexão
que põe em relevo a dinâmica do capital e seu impacto nas práticas pedagógicas, sociais e
políticas. A ideia é discutir limites do fazer pedagógico em face de problemas mais amplos,
evidenciando que a transformação social passa necessariamente pela dialeticidade educaçãosociedade.
Na segunda parte realizamos uma discussão a partir das vozes de duas professoras,
dialogando, com base nas contribuições de Freire e outros autores, e ao mesmo tempo atentos
a escuta em sala de aula (o fazer pedagógico), entrevistas e aportes teóricos que ajudam no
esclarecimento das práticas pedagógicas de base interdisciplinar.

Fragmentação capitalista e impacto nas práticas pedagógicas
A interdisciplinaridade não está isolada nem descolada da divisão do trabalho social,
portanto, é moldada por princípios capitalistas. Este conceito pode ser analisado a partir da
divisão social do trabalho que produz outras divisões e fragmentações, inclusive nos
processos pedagógicos. O diálogo com e entre os autores sobre a interdisciplinaridade põe em
questão o fato de que o termo em discussão não é assumido como um programa, projeto ou
outro formato absoluto. Pelo contrário, emerge como um caminho problematizado dentro de
determinadas condições e relações do trabalho pedagógico, tensionado por distintas
concepções, práticas e o sistema do capital.

Ao fazer a crítica necessária à compartimentação de saberes, cabe uma compreensão
de seu processo que não se dá por pura vontade de professores/as e estudantes, na estreita
relação do ensinar e do aprender, mas tem a ver com o modo como se processa a divisão
social do trabalho. Ivo Tonet (2013) apresenta essa dinâmica do saber fragmentado com base
na produção social do trabalho: “A fragmentação do saber tem sua origem na divisão social
do trabalho surgida com a propriedade privada e, na sua forma específica moderna, na
fragmentação do processo capitalista de produção da riqueza material e é funcional à
reprodução deste” (Tonet, 2013, p. 737).

Essa aproximação entre saber escolar fragmentado e divisão social do trabalho em
contexto de propriedade privada, além de reconhecer a reprodução sistemática de modelo
capitalista em sala de aula, sugere que não se pode culpabilizar professores/as e estudantes por
um tipo de ensino fragmentado, mas buscar compreender a dinâmica capitalista e encontrar
saídas com uma atitude de corresponsabilidade, sem uma proposta moralizante. Nesta
perspectiva é importante a crítica do capital e sua relação com a educação, no qual Mészáros
(2008, p.25) dialoga com contribuição significativa: “Uma reformulação significativa da
educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as
práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes
funções de mudança”.

Depreende-se que, em Mészáros e Tonet, os currículos, programas, projetos, métodos
e interdisciplinaridade, não cumprem uma função transformadora por si só. A transformação
radical passa também pela mudança das estruturas, e a educação tem seu papel nesse
processo, o que implica uma educação de cunho libertador. Não podemos negar que a lógica
capitalista que fragmenta, divide, compartimentaliza saberes e a própria vida tenha impacto
negativo em termos pedagógicos e humanos, mas não podemos também cair na inércia,
fatalismo e no comodismo. A vida não é metafisicamente determinada como um muro sem
saída, mas condicionada e ontologicamente aberta, ao novo e ao devir. Acreditamos que não
há caos do qual a humanidade não possa ser salva.

É fato que, em nível utópico, superar a sociedade de classes, dividida em seus vários
aspectos é um ideal, um sonho que se alimenta a cada momento no seio da história humana.
Esse nível utópico é proposto por Tonet (2013) ao tratar da aproximação entre saber e
sociedade de classe, por meio do rompimento da divisão social do trabalho de base capitalista
como pressuposto de maior possibilidade da interdisciplinaridade: “[…] a efetiva superação
dessa cisão no âmbito do saber passa, necessariamente, pela transformação radical do mundo
que deu origem e necessita dessa forma de produção do conhecimento” (Tonet, 2013, p.737).

A longa experiência de diferentes civilizações traduz, em nossos dias, de modo
particular na realidade brasileira, que o capitalismo se reestrutura e se fortalece. Como
estrutura de dominação e exploração sobrevive da sua capacidade de se reinventar ao longo
dos tempos. Neste contexto, a ação humana não pode ser prisioneira desse ideário. Há o que
fazer em nível micro relacional que se oponha ao modo de operar capitalista e não cair na
visão fatalista é um bom começo. Não obstante, supomos que esperar a superação total das
diversas divisões produzidas em contexto capitalista para articular um desenho do ensinar e
do aprender de forma interdisciplinar tenha o mesmo teor de esperar o fim do capitalismo para
desenhar uma ação socializadora e de ajuda aos que padecem de fome. O faminto não espera
pela revolução para poder comer, beber, divertir, vestir, etc. Qualquer ação que se oponha ao
sistema capitalista, por menor que seja, ajuda a não alimentá-lo em sua perversidade.

Para produzir conhecimento não fragmentado hoje, em qualquer modalidade da
educação, de modo especial na educação básica/EJA se requer um duplo sentido e uma dupla
luta: a luta para romper com a divisão social do trabalho, em nível mais amplo e a superação
de relações e mentalidades que dividem de um lado os que pensam e de outro os que
executam e assim por diante. Pela complexidade da superação de nível estrutural (divisão
social do trabalho) há que agir de forma mais humanisticamente possível, atuando nas microrelações de poder – redefinindo paulatinamente modos de ser, pensar e agir, minando, por
baixo, estruturas de poder dominantes-dirigentes.

Contributos de Tonet (2013) e de Mészáros (2008) fazem a crítica importante ao
sistema do capital que desagrega e fragmenta em nível macroestrutural. A reflexão em torno
da base material produtiva fornece elementos para uma apreensão da interdisciplinaridade
articulada enquanto práticas pedagógicas dentro de estruturas de poder. Entretanto, outros
modos de analisar a interdisciplinaridade têm sua importância neste percurso reflexivo. Paulo
Freire pondera a relação entre modo de produção da existência, educação e sociedade ao
afirmar que: A nova sociedade não se cria por decreto. O modo de produção não pode ser
transformado da noite para o dia. Velhas ideias insistem em ficar. A
infraestrutura vai mudando, mas aspectos da velha superestrutura
permanecem em contradição com a nova, que vem gerando (Freire, 2017, p.
134).

Freire demonstra que mudanças estruturais são complexas, paulatinas e contínuas. Isso
tem implicação concreta: Mudar a realidade por meio da educação – prática pedagógica é
possível, mas não ocorre através de ato mágico. A ponderação está posta e possui caráter
elucidativo em face do que Tonet e Mészáros têm argumentado sobre a divisão social do
trabalho e seu impacto na educação.

Ivani Fazenda, por sua vez, entra na prosa com um pensamento que dá margem à
possibilidade interdisciplinar com seus limites e alcances:
A construção da identidade pessoal e coletiva numa escola supõe a
superação da dicotomia subjetividade/objetividade, tendo em vista a
totalidade. Pode realizar-se com a instauração da proposta de um trabalho
interdisciplinar, que, entretanto, precisa ser cuidadosamente revista, seja em
suas limitações ou em suas possibilidades de efetivação (Fazenda, 2013, p.
47).

Entrevê-se o reconhecimento da interdisciplinaridade como um campo que implica em
limites e possibilidades, e que dicotomias precisam ser superadas para que emerja a
totalidade. Ivani Fazenda traz um elemento substancial às práticas pedagógicas ao afirmar que
a interdisciplinaridade não pode ser absolutizada e nem imposta. A interdisciplinaridade tem
seu modo de operar em sala de aula, a depender das inter-relações na escola, mas não é
camisa de força, nem solução para todos os males. Fazenda (2013, p. 60) propõe “[…] o
conhecimento interdisciplinar como ser uma lógica da descoberta, uma abertura recíproca,
uma comunicação entre domínios do saber, uma fecundação mútua”.

Essa lógica proposta por Fazenda não desconsidera nem desqualifica discussão feita
por Tonet e Mészáros no campo da divisão social do trabalho enquanto base originária das
diversas dicotomias. O tripé descoberto, abertura e fecundação aponta para o inédito viável
freiriano – interdisciplinaridade é difícil e complexa, mas possível e urgente. Neste sentido
Thiesen (2008, p. 550) enfatiza um tipo de escola necessária e, por consequência, a
interdisciplinaridade como elemento de importância atual: “[…] a escola precisará
acompanhar o ritmo das mudanças que se operam em todos os segmentos que compõem a
sociedade. O mundo está cada vez mais interconectado, interdisciplinar e complexo”.

Por essa razão (mundo interconectado, interdisciplinar e complexo), a consciência não
pode ser tomada como pura abstração, e Freire traz um elemento que esclarece esse
entendimento ao afirmar que “[…] a consciência do mundo que implica a consciência de mim
no mundo, com ele e com os outros, que implica também a nossa capacidade de perceber o
mundo, de compreendê-lo, não pode ser reduzida a uma experiência racionalista. É como uma
totalidade” (Freire, 2013, p, 132).

A ideia de totalidade em Freire tem forte aproximação do que Edgar Morin (2011)
propõe no que tange à complexidade. Para ele, a terra “[…] é a totalidade complexa físicobiológica-antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e o homem, uma
emergência da história da vida terrestre. A relação do homem com a natureza não pode ser
concebida de forma reducionista, nem de forma disjuntiva” (Morin, 2011, p. 40). Ele também
alerta para a inadequação de saberes fragmentados em um mundo globalizado e com
problemas que exigem outros modos de conceber, tanto o conhecimento quanto a realidade
social. Segundo Morin há inadequação “[…] cada vez mais ampla, profunda e grave entre os
saberes separados, fragmentados, compartimentados entre as disciplinas, e, por outro lado,
realidades ou problemas cada vez mais pluridisciplinares, transversais, multidimensionais,
transnacionais, globais, planetários” (Morin, 2011, p.13).

Por sua vez, a interdisciplinaridade emerge, em Juarez Thiessen, como movimento, o
que demonstra o caráter dinâmico dos dois atos, do ensinar e do aprender no mundo, com o
mundo e com os outros: A interdisciplinaridade é um movimento importante de articulação entre o
ensinar e o aprender. Compreendida como formulação teórica e assumida
enquanto atitude, tem a potencialidade de auxiliar os educadores e as escolas
na ressignificação do trabalho pedagógico em termos de currículo, de
métodos, de conteúdo, de avaliação e nas formas de organização dos
ambientes para a aprendizagem (Thiesen, 2008, p. 552).

O percurso reflexivo entre e com os autores vai ocorrendo, cada um com seu modo de
conceber, mas alinhado do ponto de vista crítico-analítico. Neste sentido, propomos uma
discussão de interesse a essa temática com aspectos dialógicos e críticos do ponto de vista
teórico-vivencial na seção a seguir.

O que dizem e vivenciam professores/as sobre a interdisciplinaridade
Em conformidade com a discussão encetada, nesta seção, apresentamos análise de
dados orientada por apreensão de motivações de opiniões, de atitudes, de valores, crenças e
tendências no âmbito das práticas e concepções pedagógicas; experiências interdisciplinares
de professores/as; nesta, a interdisciplinaridade é vista como uma terminologia de difícil
apreensão e praticidade; pois se busca depreender concepções interdisciplinares de
professores e professoras que atuam na Educação de Jovens e Adultos e a positividade e
possibilidade da interdisciplinaridade na EJA. A professora Sol
proporciona um diálogo
inicial significativo:
Tanto nesta escola quanto na em que estive (Escola Classe) experimentei a
interdisciplinaridade. Assuntos que às vezes não estão ligados diretamente à
Língua Portuguesa, como a inclusão, podem ser trabalhados de maneira
interdisciplinar. Fizemos dinâmica em sala de aula para saber como é a
situação da pessoa que não enxerga; estudantes com deficiência trouxeram
exemplos práticos de suas dificuldades cotidianas; fizemos leitura e
interpretação de textos; discutimos sobre a dificuldade de incluir aluno
especial. Trabalho com poemas e aqui discutimos problemas sociais, secas,
etc. Já trabalhei de maneira interdisciplinar em Escola Classe quando
ajudava em coordenação pedagógica. Não foi um trabalho fácil fazer
interdisciplinaridade entre geografia, história e português com turmas de 4º e
5º anos, mas foi possível e deu certo (Professora Sol ).

Optamos por usar nome fictício neste artigo, preservando a identidade das professoras que participaram do
estudo. Ao invés de usar os nomes reais, usamos nomes de estrelas.

É importante considerar que as narrativas que tratam de experiências e concepções
interdisciplinares não estão dissociadas de um tipo de formação, a que ocorre em múltiplos
meios, entre os quais a formação acadêmica. Isso quer dizer que práticas e concepções de
professores/as são decorrentes da absorção de certo tipo de tendência educativa e de sua
relação multidimensional. Modelos de educação e de escola, como também as influências de
conjunturas sociais, políticas, econômicas, entre outras, condicionam o modo de atuar e
conceber de professores/as. A questão é: como os professores/as que atuam na Educação de
Jovens e Adultos foram formados? Quais especificidades formativas são exigidas para lidar
com essa modalidade da educação básica?

A atuação do/a professor/a, ancorada em um tipo de tendência educacional em que
ele/a é produto e produtor traz ao debate a necessária compreensão desses sujeitos dentro de
um contexto maior, para além do ato de ensinar. É preciso entender que o ensino, o método
utilizado, a seleção do que ensinar e as concepções estão estreitamente vinculadas ao modo
pelo qual o/a professor/a foi formado/a com suas epistemologias. Isso tem implicação direta
na prática pedagógica e nas concepções, entre as quais a interdisciplinaridade. Neste sentido,
a contribuição da professora Sol, em entrevista, abre um campo promissor no que se pode
entender por práxis interdisciplinar, em muito extensivo a outros professores e professoras.
Ensino, método, seleção de conteúdo e gestão da sala de aula têm a ver também não
apenas com o que foi feito do/a professor/a, mas com a condição que tem de refazer o que foi
feito com outra perspectiva teórico-prática, vez que não há apenas uma relação de produtoproduto da história, mas de processo-produto-produtor. E, nas palavras de Freire (2019,
p.100), “[…] uma presença ética no mundo como força humanizadora e libertadora, e não
como adaptação”.

Entretanto, possuir uma boa concepção de interdisciplinaridade, interligar
conhecimentos e aproximar pessoas e disciplinas no âmbito da escola, não significa
necessariamente qualidade pedagógica e uma nova abordagem teórico-conceitual e vivencial
da educação. Ou seja, precisamos de cautela ao tratar de qualquer assunto que remeta às
práticas puramente pedagógicas de professores/as. Há questões de ordem socioeconômicas e
políticas implicadas nos processos administrativo-pedagógicos da escola.
O tema gerador possui a sua maior expressão inicialmente no que Freire (2015, p. 116)
considera sentido prático e relacional, o fazer da educação como “mediatizada pelo mundo” e
nesta perspectiva os temas significativos, são aqueles que partem das situações vivenciadas e
constituem conteúdos a serem estudados. A posteriori não há conteúdo a ser estudado fora do
mundo.

Estabelecer a discussão a partir do tema gerador “pessoas com deficiência”, orientando
estudantes à pesquisa e troca de saberes em sala de aula, tem o mesmo teor e significação de
pessoa, educação, sociedade e mundo de temas geradores que remetem à violência contra
mulheres, feminicídio, racismo, homofobia, lesbofobia, etc. E, certamente, em contexto
brasileiro atual, em níveis federal e locais, esses temas são territórios de disputas ideológicas,
jurídicas, políticas e pedagógicas.

O entendimento de que a educação ocorre no mundo, com o mundo e os outros
tematiza de certa forma o conteúdo a ser trabalhado na escola, a ponto de o isolamento do
mundo com suas várias expressões da vida, sua globalidade e perplexidade em movimento
dificultar a compreensão da totalidade. Tema gerador é ponto de partida para uma
investigação do próprio tema ou de temas relacionados ao universo do educando. Freire
(2015, p.134) propõe que a metodologia investigativa do tema seja conscientizadora, pois
“[…] além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa
forma crítica de pensarem seu mundo”.

Apreender a realidade humana em sua expressividade temática: sonhos, desejos,
sofrimentos, dores, exclusão, inclusão, opressão, lutas, e desafios, faz parte de um contexto de
inserção da pessoa humana no mundo com todas as suas implicações. Desse modo, ao assumir
um tema gerador no contexto escolar público, e especificamente na Educação de Jovens e
Adultos, deve-se, a rigor, assumir a realidade aberta do mundo que está em permanente
movimento. Não basta adotar um tema gerador, é preciso que esse seja acompanhado de uma
metodologia e de uma concepção teórica crítica e problematizadora do mundo.

Tema gerador sem imersão crítica no mundo transforma a ideia de gerador em
identificador, em que se opera pela lógica puramente descritiva da realidade. Esse modo de
atuar pedagogicamente, apenas identificando fenômenos não interessa à Educação de Jovens e
Adultos. Em outros termos, não se avança no campo da ciência, das culturas e história ao
restringir e fixar o olhar apenas ao que já está dado sem ir além.

O lugar de onde falamos é o lugar primordial de onde vivemos, acreditamos e
alimentamos esperanças. Isso é demonstrado nas falas dos professores e professoras, sujeitos
dessa investigação. O tema gerador tem também, necessariamente, um lugar onde pode ser
analisado, estudado e compreendido: a realidade humana em seu conjunto, em sua totalidade.
A esse respeito Freire (2015, p. 136) é enfático: “[…] o tema gerador não se encontra nos
homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser
compreendido nas relações homem-mundo”.

Inclusão, o uso racional/sustentável da água, bem como o JCON, a exemplo do
contexto da escola pesquisada, traduzem a prerrogativa freiriana de que temas partem da
realidade, de um cenário humano multifacetado. Além dos temas tratados em nível de projeto
da escola, de participação coletiva, há os mais específicos propostos e discutidos em sala de
aula pelos professores e professoras de cada disciplina, a exemplo do tema Gênero e
Homofobia, proposto pelo professor Sirius (Geografia).

Esse tema gerador tratado em 2016 teve e tem sua relevância político-social,
pedagógica e epistêmica, mas hoje, no Brasil, em contexto pós-eleições de 2018 com uma
reconfiguração política conservadora, há que se intensificar a luta não apenas em favor da
diversidade humana, cultural e política, como também do respeito à educação e
trabalhadores/as públicos, de modo particular dos profissionais da educação e extensivamente
aos estudantes.

Há diferentes modos de investigar a realidade humana. Mas, o que significa investigar
um tema gerador? Freire (2015, p. 136) propõe uma possibilidade: “Investigar o tema gerador
é investigar o pensar dos homens referido à realidade, é investigação sobre a realidade, que é
sua práxis”.

Investigar a realidade é exigente e desafia o lugar de onde falamos, particularmente na
escola com os estudantes. Ao propor investigar um tema em sala de aula, cabe antes, uma
preparação do/a professor/a para lidar de maneira mais consistente diante do que se propõe
aprofundar. Em outras palavras, exige pesquisa prévia para fazer a discussão qualificada com
os estudantes e com os pares. Essa atitude investigativa não tem nada que ver com a postura
de detentor/a absoluto/a do conhecimento, nem com academicismo.

JCON é um dos projetos utilizados pela escola pesquisada e significa Jogos e Conhecimentos trabalhados de
maneira interdisciplinar com estudantes e professores/as. É um projeto que tem mais de cinco anos. Neste ano de
2017 ocorreu nos dias 16, 18 e 21 de setembro.

A palavra práxis, indissociável da dialogia, é imprescindível na análise crítica do tema
gerador. Neste sentido, Freire (2015, p. 142) sinaliza que “[…] a tarefa do educador dialógico
é, trabalhar em equipe interdisciplinar o universo temático”. É inteligível dizer que
criticidade, dialogicidade e eticidade se articulam no que se propõe como práxis pedagógica,
também político-social. Pela práxis dialoga-se com a realidade humana em sua complexidade,
faz-se a crítica necessária e se anuncia um projeto de vida, de sociedade e de mundo diferente
da que está aí em processo de desarticulação do Ser Mais – vocação ontológica do humano,
como nos indica Freire em sua obra.

O ideário de Freire, amplo e ao mesmo tempo desafiante, coloca o papel do/a
educador/a de forma a atender aos princípios da dialogia, criticidade e eticidade e de uma
necessária atuação em equipe. Estando em equipe, dentro dos limites e em prática
interdisciplinar “intra”, o/a professor/a traz à sala de aula temas que não são seus, nem dos
alunos, mas que estão imbricados na vida de todas as pessoas que respiram várias dimensões,
entre as quais a social, a política, a econômica, etc. Conforme o Currículo em Movimento da
Educação Básica do Distrito Federal, Pressupostos Teóricos (SEEDF, 2013, p. 68) a ideia de
“intra”, se refere à prática interdisciplinar em uma disciplina, em que um/a professor/a faz o
diálogo com outros campos da ciência, ou seja, a interdisciplinaridade pode acontecer no “[…]
próprio componente curricular, quando são utilizados outros tipos de conhecimentos (artes,
literatura, corpo e movimento, relações interpessoais, entre outras) que irão auxiliar ou
favorecer a discussão específica do conhecimento do componente curricular”. Fato
evidenciado na pratica das professoras pesquisadas.

Um elemento de grande importância na narrativa de Sol e que permeia a realidade da
Educação de Jovens e Adultos é a situação de vida dos educandos e educandas ao longo de
suas trajetórias. Ao dizer “[…] estudantes trazem à sala de aula suas vivências de dificuldades
na condição de alunos especiais” a professora faz emergir o que Freire (2001, p. 71) propõe,
ou seja, “partir do saber de experiência feito para superá-lo- não é ficar nele”.
Freire propõe um ponto de partida e não um fim em si mesmo por onde se deve
começar o ensino: trajetórias truncadas ou não de estudantes. Ao fazer esse percurso,
professores/as reconhecem a realidade humana traumática e transforma em conteúdo o vivido
e pensado, em tema gerador em função de um ensino contextualizado, recontextualizado e de
aprendizagens significativas.

A fala de Sol em entrevista é aproximativa do observado em sala de aula. Ao iniciar a
aula, ela se orientava por uma questão-chave, como “O que é interpretar um texto?”; “O que
você entende quando um professor dá o texto e diz: leia e interprete, o que significa isso? ”.
Com base nestas questões a professora interagia com os estudantes apontando alguns aspectos
a serem observados ao ler e interpretar: enxergar além do que o texto fala; a leitura de um
texto tem sempre um sentido para a vida; interpretar diz respeito à opinião sobre o assunto; o
objetivo pedagógico é que saiam do Ensino Fundamental como formadores de opinião;
pretende trabalhar paulatinamente com os estudantes diversos graus de dificuldades e que há
vários tipos de texto, inclusive a ideia de que a imagem é um texto.

Esse “saber de experiência feito” tem sua dinâmica também no trabalho desenvolvido
pela professora Rigel – de Português, que possui pontos convergentes com Sol, quando, em
sala de aula, o assunto “relato” foi substancialmente produtivo. A professora Rigel fez a
leitura em sala de dois textos, lendo primeiro aquele que mais lhe chamou atenção. O tema do
texto foi: “Relate o que você fez hoje”. Um estudante fez seu texto todo em caixa alta para
descrever seu dia: “LEVANTEI CEDO, TOMEI CAFÉ, FUI AO TRABALHO, MOLHEI A
MASSA, PASSEI NA PAREDE”… A professora teve uma impressão: “é um trabalhador que
pega no pesado”. Teve também uma preocupação: “O ENEM aceita redação oficial com letra
em caixa alta, com letra de forma”?

O segundo relato lido em sala foi a de uma estudante. Ela descreveu seu dia assim:
“Levantei cedo, fiz o café, arrumei a casa, fiz o almoço, lavei as louças, fiz o lanche e depois
o jantar”. Ao estabelecer a conversa com a professora em sala de aula, Rigel disse tratar-se da
estudante Nefestari que tem 15 anos de trabalho como cozinheira e que sente necessidade de
estudar para avançar e melhorar a condição de vida.

Os dois relatos demonstram que as experiências de vida, muito claramente no mundo
do trabalho, têm um saber real, de experiência, reconhecido pelas professoras no sentido de
acolher, considerar e avançar, não ficando só na vivência compartilhada. Em sala de aula
(observação), Rigel disse “parto sempre da experiência do aluno para avançar no ensino e na
aprendizagem”, sendo os relatos dos/as estudantes expressões de suas vidas diárias em
qualquer situação específica. Notamos aqui na narrativa de Rigel uma inter-relação entre
saberes cotidianos e saberes escolares.

Quando o saber vivenciado pelos estudantes é assumido em relato, em leitura e
interpretação, a escrita deixa de ser grafia pura e isolada da vida para tornar-se escrita a partir
de situações vivenciadas. As duas professoras (Sol e Rigel) inspiram leituras, escritas e
interpretações a partir de situações de vida, mas que se vá além dessas situações por meio da
interpretação crítica. Como conceber essa leitura e interpretação?

A professora Sol, em sua contribuição de abertura dessa discussão fala do uso de
leitura e interpretação de texto ao tratar do tema gerador “inclusão”. Rigel interpreta relatos de
estudantes a partir de suas vivências. Ler e interpretar constituem-se como aspectos de alta
complexidade no contexto do ensino e das aprendizagens, identificado em observação de aula,
quando, em leitura de textos de diferentes gêneros, alunos apresentavam dificuldade de
interpretação. De fato, não basta apenas ler, como nos lembra Freire (2001, p. 77): “A prática
de ler seriamente textos termina nos ajudando a apreender como a leitura, enquanto estudo, é
um processo amplo, exigente de tempo, de paciência, de sensibilidade, de método, de rigor, de
decisão e de paixão de conhecer”.

O ato de ler e de interpretar são tratados por Sol e Rigel com base em questões mais
amplas, dando um contorno também amplo e de implicação social analítica à disciplina
Português. Ser exigente não significa ser autoritário, mas também se distanciar da
licenciosidade. A seriedade no ato de ensinar e de aprender, em dois atos, epistemológico e
político-social, tem a ver com rigorosidade metódica e não com tecnicismo e/ou
autoritarismo, entendimento esse compartilhado pelas professoras.

As vivências das professoras Sol e Rígel, se aproximam do que Freire (2001, p. 79)
acredita ser de grande importância na educação: “[…] a leitura da palavra passa pela leitura do
mundo”. E o mundo mais próximo e dinâmico do estudante é o trabalho em suas diversas
facetas. É o seu mundo na condição de pessoa com deficiência, negro/a, quilombola, mulher,
indígenas, ribeirinho, pescador/a, LGBTQI+. É o nosso mundo com escassez de água, de
eticidade na política. É o nosso mundo em que compartilhamos os mesmo desafios,
dificuldades e sonhos. Do ponto de vista da precedência da leitura do mundo sobre a palavra,
há dois momentos interligados necessários à compreensão dos sentidos da leitura e da
interpretação: ler e escrever não são atos mecânicos, e a releitura do mundo é condição
primeira para entender o que se escreve. Esse entendimento implica uma metodologia capaz
de compreender o mundo a partir de uma apreensão crítico-analítica, podendo ser a
interdisciplinaridade uma das possibilidades dessa apreensão.

A precedência da leitura do mundo em relação à leitura da palavra não pode ser
entendida em uma perspectiva linear, de temporalidade. O que Freire ajuda a entender é que
se trata de uma precedência enquanto maior importância e relevância, não no sentido
cronológico de quem vêm antes ou depois. Ler, escrever e calcular possuem cada qual
importância, mas dentro de uma lógica interpretativa, com ênfase na dialeticidade. O
contributo da narrativa de Sol, sua vivência interdisciplinar marcada por dificuldades e
possibilidades, nos lembra o inédito viável freiriano (2019), pois muito claramente no que ela
atribuiu à discussão sobre inclusão como “tema gerador”, alinha-se à experiência
interdisciplinar da professora Rigel (Português) que deixa evidente, em sua fala, o papel
social da língua portuguesa quando essa dialoga com outras disciplinas em favor de uma
maior compreensão da vida. Um trecho da entrevista com Rigel traz elementos importantes e
mais amplos de sua trajetória que remetem à interdisciplinaridade:

O primeiro fato que posso colocar é que vejo o ensino de língua portuguesa
como interdisciplinar pela própria natureza, porque é língua nativa, desde os
quatro meses falamos essa língua. Toda forma de aprender, em arte,
matemática, geografia, história tem a língua portuguesa na parte de
interpretação. Em Português o estudante aprende história, quando uso mapa
Mundial, o mapa do Brasil e a partir do texto e contextos trabalho análise
sintática, locução adjetiva, verbo, etc. História, português uso mapa Mundial,
o mapa do Brasil, para localizar onde estão no mundo ou mesmo no Brasil.
Os alunos têm dificuldade nas terminologias. Trabalho a parte de
compreensão interdisciplinando música, poema, soneto, família, casa, a
realidade deles. Gramática é a última parte, a que menos realço. O
importante é que eles entendam o momento político e econômico antes de
entender locução adverbial, verbo. Já trabalhei com professor de artes,
história e geografia conteúdos com português. O aluno não gosta é de
trabalhar de forma estanque, a língua desconectada de outras disciplinas. Há
relatos de alunos que acham legal o tipo de trabalho interdisciplinar.

Há elementos substanciais na fala de Rigel que revelam uma experiência
interdisciplinar, mais concretamente em Artes, História, Português e Geografia. Fazemos
uma discussão nos atendo a alguns aspectos identificados na fala: português como língua
interdisciplinar em sua natureza; entender o momento político e econômico como precedente
ao conhecimento gramatical; o trabalho interdisciplinar com artes, história e geografia; a
leitura em voz alta pelos estudantes e relatos de estudantes que aprovam o trabalho
interdisciplinar.

O entendimento de Rigel é de que diferentes áreas e disciplinas estabelecem
interações, sendo a Língua Portuguesa basilar para atingir níveis de compreensão e
interpretação em outras disciplinas. Em que pese a importância da Língua Portuguesa, é bom
nos perguntarmos: há uma disciplina mãe de onde parte um maior nível de consciência? Ao
dar centralidade a uma disciplina não estamos hierarquizando o conhecimento especializado?
A compreensão do momento político-econômico-social, antecedendo e concomitantemente
trabalhado com a especificidade da disciplina, tem uma importância pedagógica imensurável.
É a leitura do mundo, das situações vivenciadas no dia a dia que dão sentido à leitura da
palavra, muito do teor freiriano já discutido.

Mais uma vez, em Rigel, assim como em Sol e outros professores/as, a
interdisciplinaridade mostra-se um domínio possível. A professora Rigel deixa isso muito
claro quando convida professores de Artes, Geografia e História para atuarem
interdisciplinarmente e quando, em sua própria disciplina trabalha desta maneira. A
professora considerou que houve resultado positivo na leitura coletiva em sala de aula, sendo
uma oportunidade de o/a estudante se desinibir diante dos colegas e da professora, e de tirar
dúvidas da leitura em termos gramaticais. De acordo com Rigel a estudante Theostana6
disse ter como objetivo concluir os estudos na EJA para poder ter condição de evangelizar e
considera que já está menos inibida e com leitura de texto melhorada.

A leitura em voz alta, feita pelos estudantes, em sala de aula, a participação deles e
delas ao estabelecerem uma conversa com a professora, tem muito a ver com o processo de
chegada dos estudantes à escola na perspectiva de Reis (2011, p. 69): “O silêncio parece ser a
sua marca. Homens e mulheres que buscam a escola, silenciados ou em silenciamento nas
relações de família ou emprego. Excluídos de tudo, ou quase tudo, sabem o que é sentir em si
a realidade da exclusão”. A aproximação ao que Rigel chama de desinibição, Reis estende o
nível de compreensão:
Esse falar (ler em voz alta, participar em sala…) leva ao domínio da fala, da
oralidade, à descoberta do poder falar e que esse poder falar significa ter
poder. Poder de expor-se, confrontar-se e confrontar, transformar e ser
transformado. Influenciar e ser influenciado. Tomar decisões e exercer
decisões. De silenciado e em silenciamento, ele pode desenvolver um seu
processo de dessilenciamento. Dessilenciamento em que a verbalização e os
gestos que o acompanham indicam uma ruptura de um antes silêncio
opressor (Reis, 2011, p. 70).

Desde o momento da chegada à escola, na condição de excluído em seus vários
espaços e situações, estudantes da EJA passam necessária e profundamente, de acordo com a
atuação dialógica e participativa em sala de aula, por uma mudança substancial, que nas
palavras de Reis (2011) tem a ver com algo maior: a constituição de um ser que fala, que
expressa, como sinal de exercício do poder. Freire (2015, p. 108) dá um norte propositivo a
esse respeito: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na
ação-reflexão”. Reflexão que tem seu contorno no diálogo no enfrentamento das relações
capitalistas que reverberam nas práticas pedagógicas.

Considerações finais
Concluir é sempre um desafio e uma tentação. Desafio de abarcar a totalidade do que
se construiu ao longo do texto, e tentação na medida em que se pode cair na ilusão de que se
apoderou de uma resposta definitiva aos problemas identificados. O propósito aqui é diferente
– apenas apresentar o que se foi possível e o ainda-não, em processo de fazer e refazer.

Foi recorrente nas falas e práticas de professores/as, em sentido mais geral, e na
particularidade das professoras em questão, o fato de se atribuir à interdisciplinaridade a ideia
de uma “palavra difícil de ser pensada e praticada”. O reconhecimento da complexidade da
semântica contextualizada em níveis macro e micro-político, assim como o de colocar em
prática se estende ao fato de ser a interdisciplinaridade um modo de conhecimento que se
complexifica ainda mais em sua relação com o capital, em sua globalidade.

Essa noção – interdisciplinaridade como algo difícil é substancialmente articulada com
a noção de possibilidade, em meio aos entraves encontrados no percurso das práticas pedagógicas. Isso indica a atualidade do pensamento freireano, o inédito viável, em que
problemas concretos se somam à esperança e conduzem a uma luta, pois o difícil não se
cristaliza como impossibilidade. Em educação como prática da liberdade e de emancipação
humana não há lugar para o determinismo fatalista.

A propósito do inédito viável, ficou a possibilidade concreta, real, de que a
interdisciplinaridade, tanto em nível intra, como em nível inter, modifica a relação ensinoaprendizagem, no sentido que favorece a pesquisa e a problematização da realidade em suas
múltiplas dimensões, dentre as quais no que tange à diversidade e às questões sociais.
Favorece também o encontro e diálogo entre professores/as, disciplinas e a realidade humana.

A vivência em sala de aula, na particularidade disciplinar e no encontro entre
disciplinas, percebida nas falas das professoras, indica um maior acolhimento e respeito no
processo de reflexão em torno de um tema gerador. Reconhece-se a relevância de práticas
interdisciplinares, e isso tem impacto positivo tanto na vida dos/as professores/as quanto na
dos estudantes, simultaneamente.

Em uma outra perspectiva, considera-se insuficiente práticas puramente pedagógicas
em face dos problemas humanos decorrentes do sistema do capital. O que se coloca, no nível
teórico, é que a transformação socioeconômica deve caminhar em sintonia com uma educação
que se propõe libertadora, ou seja, o tipo de pedagogia – crítico-reflexiva serve a interesses de
camadas populares, e sendo, assim problematiza a contradição oprimido-opressor,
desumanização-humanização promovido pela estrutura da ordem dominante do capital. Em
outros termos, o capitalismo dificulta a vocação ontológica de Ser Mais, como nos propõe
Freire ao discutir a humanização. A educação é mediação para contribuir no rompimento da
lógica do capital.

Enfim, fazer o possível, sem cair na inércia do “impossível”, é a tônica das falas e
práticas de professas pesquisadas. Fica o desejo de fazer dessas vivências um instrumento
maior de aplicabilidade da interdisciplinaridade como instrumento de conhecimento que
problematiza, tematiza e possibilita mudança, ainda que em seu germe. O caminho está
aberto, e em cada passo dado há um sabor de concepções, vivências e desejos de vivência da
ética universal do humano em detrimento da ética do mercado. O caminho tem muito a ser
percorrido. Sigamos em frente!

 

Por Cristino Cesário Rodha, Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB) e docente da Secretaria de Educação do Distrito Federal.