"O golpe não passará" – Entrevista com Antonio Lisboa

Entrevista do professor Antonio Lisboa ao jornal suíço Le Courrier, em 6 de junho de 2016
Desde 12 de maio passado, o Brasil vive um momento-chave em sua história. A suspensão da presidenta Dilma Roussef através de um processo de impeachment, descrito como um golpe por toda a esquerda, levou à formação de um governo conservador. Este último não hesitou em tomar uma série de medidas antissociais – contrárias ao mandato confiado em 2014 à sucessora do ex-presidente Lula da Silva.
No entanto, a presidenta não foi destituída. A principal central sindical de trabalhadores brasileiros, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), prepara uma greve geral em setembro, para virar o jogo e, eventualmente, apostar numa Assembleia Constituinte para refundar o país. Sobre esta questão, o Le Corrier conversou com o professor Antonio de Lisboa Amâncio Vale, Secretário de Relações Internacionais da CUT e membro do conselho da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Confira:
Para você, é de fato um golpe, por quê?
Lisboa: Sim, é um golpe. Este é, naturalmente, um tipo diferente de golpe de Estado tradicional, que teve lugar no passado na América Latina, porque o exército estava envolvido. Mas a Constituição foi violada.
No Brasil, acusaram a presidenta Dilma de cometer “um crime de responsabilidade”. No entanto, é claro que Roussef não era culpada deste crime. Ela tem sido criticada, no entanto, por fazer pagamentos antecipados, que deram o nome de “pedaladas fiscais”. Um exemplo: quando o governo precisava fazer pagamentos ao “Bolsa Escola” – programa de subsídios a famílias pobres para que seus filhos possam ir à escola – e ela não tinha, no tempo, dinheiro para fazê-lo, então recorreu a bancos públicos para adiantar esse dinheiro .
Era uma prática comum de muitos governos anteriores. Dos 27 presidentes brasileiros, dezoito recorreram a este mecanismo, incluindo os dois últimos chefes de Estado. Mas isso foi usado como pretexto para propor o impeachment de Dilma Rousseff.
Quais foram os verdadeiros motivos do golpe?
O golpe tem três causas principais. O primeiro é geopolítico. O golpe foi claramente orquestrado pelos Estados Unidos para recuperar o controle sobre a América Latina, ganhou em grande parte por movimentos progressistas sombreando a hegemonia americana. A segunda causa é, naturalmente, econômica: as novas reservas de petróleo recentemente descobertas no Brasil valem bilhões de Reais. A lei destinava a exploração dos hidrocarbonetos à Petrobras, a companhia estatal que tem o monopólio da exploração. O que o Senado fez imediatamente após o golpe? Tanta aprovar uma nova lei para abrir o mercado para a exploração multinacional.
Alguns acreditam que o golpe foi realizado para salvar os funcionários corruptos acusados ​​no caso Petrobras …
Esta é a terceira razão: os interesses diretos das elites locais foram ameaçados. No Brasil, a classe dos ricos é o herdeiro, direta ou indiretamente, da escravidão – banida há 120 anos em nosso país. Esta elite é um dos piores do mundo. Ele rejeita qualquer ação que reduz as desigualdades, como as realizadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), que governaram o país desde 2003.
Então, quando a justiça e a polícia começaram a investigar os meandros da corrupção – não apenas o escândalo Petrobras – os membros dessa elite se assustaram. Eles também decidiram retardar o processo de transparência dos crimes cometidos por autoridades.
Muitos dos novos ministros, que são todos homens brancos, e a maioria de uma certa idade, são acusados ​​de corrupção …
Oito dos 23 novos ministros foram ainda acusados ​​pela justiça no escândalo da Petrobras, por peculato. Dois desses 23 senhores tiveram que renunciar por causa de escutas telefônicas. Um sugeriu derrubar Roussef para acabar com as investigações da justiça neste caso. O outro, à frente do Ministério da Transparência, especialmente criado por Temer em meados de maio, havia aconselhado o presidente do Senado sobre como escapar dos juízes. Este ministério era para acabar com a independência de um órgão do Estado, a Controladoria Geral da União, cuja missão era, entre outras, lutar contra a corrupção.
Quais foram as reações dos trabalhadores confrontados com esses acontecimentos recentes?
Primeiro, perplexidade. Mas as pessoas estão começando a perceber o que está acontecendo. Nós já temos manifestações todos os dias no Brasil. Mal assumiu, o governo interino intensificou os ataques contra os direitos sociais. Primeiro cortou fundos sociais para a educação. Os professores e alunos estão na rua. Michel Temer também aboliu o Ministério da Mulher, da Igualdade Racial e Direitos Humanos, bem como o da Cultura. Mulheres, artistas e intelectuais, dezenas de milhares, têm saído às ruas com o slogan “Fora Temer”.
Os novos ministros são levados para os quilombolas, comunidades habitadas por afrodescendentes, formadas há mais de cem anos por escravos fugitivos. O processo de regularização fundiária dessas áreas foi suspenso. Eles também estão se mobilizando.
Em outra ponta, integrantes do Movimento dos Sem Teto em São Paulo tomaram as ruas da capital na semana passada, porque o Estado suspendeu o programa de subsídios “Minha Casa, Minha Vida”, que permitia aos mais pobres acesso à habitação (três milhões de casas e apartamentos foram criados desde 2003). Finalmente, pensionistas estão protestando porque a indexação das suas pensões com base na evolução do salário mínimo está ameaçada. Todas essas pessoas estão conscientes de que este é o resultado do golpe.
Perante esta situação, qual foi a postura da CUT?
Alguns propõem eleições antecipadas para resolver a crise atual. Somos contra. Para mudar o atual equilíbrio de poder, precisamos de uma reforma estrutural da política, juntamente com as eleições gerais, tanto legislativa – nos níveis nacionais e regionais – quanto presidencial. O atual Congresso está comprometido com a causa deste novo governo golpista. Acreditamos em uma assembleia constituinte que permita uma revisão política e modifique as regras de financiamento das atuais de campanhas eleitorais – estas que distorcem o processo democrático e incentivam a corrupção.
Estamos preparando uma greve geral para setembro. É um desafio porque o Brasil nunca viu algo assim. O primeiro objetivo é fazer com que o Senado não aprove a remoção de Dilma Rousseff em novembro, conforme previsto no cronograma. Alguns senadores que votaram pelo afastamento repensaram e já disseram que não vão votar pelo impeachment. E eles precisam de dois terços dos votos para afastar definitivamente a presidenta.
O preço das omissões de Lula e Dilma
Você acha que as pessoas vão se mobilizar pelo retorno de Dilma Rousseff, embora o descontentamento da sua gestão fosse muito forte na opinião pública?
Nós mesmos fizemos duras críticas à política econômica do governo. Nós não pedimos a sua volta pelo lado econômico, para negócios, mas pelas propostas para a qual ela foi reeleita em 2014: o fortalecimento de programas sociais e aumento dos investimentos através de novos empréstimos. Em vez de implementar estas ações no início de seu segundo mandato, a presidenta, no entanto, trouxe uma política de austeridade que serviu para aumentar ainda mais o desemprego e precariedade. Isto gerou grande insatisfação contra o governo. Em 2015, organizamos várias manifestações contra a política econômica e social.
Quais foram, para você, os principais erros dos governos de Lula e Dilma que levaram à situação atual …
Quando Lula se tornou presidente, ele escolheu suas prioridades: a luta contra a pobreza e a desigualdade social. Esta política teve um sucesso enorme: mais de 30 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema. Mas o governo não atrelou isso a uma transformação estrutural do país: ele poderia fazê-lo através de reformas globais do sistema político, judicial e fiscal, bem como a democratização da mídia – que está nas mãos de sete famílias.
Como a crise econômica afetou o país por vários anos?
A política social dos governos Lula e Dilma funcionava com o crescimento. Mas como a economia se estagnou nos últimos anos, o poder de compra diminuiu e a insatisfação foi às alturas. E é aí que o sistema político e de mídia permaneceram intactos, jogando pesado para derrubar o governo e acabar com sua política. A questão da corrupção, que afeta toda a classe política, tem sido habilmente utilizado pelo mais corrupto, para canalizar a raiva contra o governo de Dilma Rousseff, que se nunca foi acusado de corrupção.
Link original (em francês): http://www.lecourrier.ch/139729/le_coup_d_etat_ne_passe_pas