Projeto 'Mulheres Inspiradoras' vira política pública em escolas do DF

Entre muitas outras virtudes, e tal como mencionado pelo pedagogo Paulo Freire, ensinar exige alegria e esperança. Essa foi a máxima que a professora Gina Vieira Ponte tinha em mente quando criou, em 2014, o projeto Mulheres Inspiradoras. A iniciativa não se trata apenas de um programa inovador, premiado nacional e internacionalmente. Ela configura a primeira proposta aplicada em sala de aula e, posteriormente, incorporada pelo GDF. A ideia se tornará política pública a partir de abril. A meta é permitir que, com o tempo, o trabalho alcance um número cada vez maior de instituições de ensino públicas do Distrito Federal.

Intitulado Programa Mulheres Inspiradoras — Políticas de valorização de processos autorais em leitura e escrita na rede pública de ensino do Distrito Federal, o projeto agora dependerá de aporte da Secretaria de Educação (SEDF). A maior parcela do dinheiro reservado para o programa será investida na aquisição das obras literárias selecionadas para as escolas participantes. A outra parte será destinada à compra de materiais necessários para a realização do curso de formação de professores, que serão selecionados por meio de edital de chamamento público.
Na quinta-feira, Gina e outras quatro professoras, que gerenciam, acompanham e executam os trabalhos do projeto, enviaram à pasta uma proposta de edital para avaliação da assessoria jurídica. Se o documento for aprovado sem modificações,  será encaminhado para aprovação da Subsecretaria de Educação Básica e para publicação no Diário Oficial do Distrito Federal até o fim de março. O próximo passo consistirá em escolher 30 professores de turmas de 9º ano do ensino fundamental de 15 escolas, em um processo seletivo previsto para abril. As atividades do Mulheres Inspiradoras serão desenvolvidas pelos educadores durante e após um curso preparatório realizado no Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais de Educação (Eape), na 907 Sul.
Expansão
Em 2017, um acordo de cooperação internacional firmado entre o GDF, o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) permitiu que o projeto se expandisse e atendesse 15 escolas — além do Centro de Ensino Fundamental 12 de Ceilândia, onde nasceu. O banco investiu US$ 20 mil para compra dos livros. A OEI ficou responsável pela gestão do recurso, e o GDF, pela capacitação dos 30 professores selecionados por meio de edital. Seis regiões administrativas foram atendidas pela iniciativa (leia Memória).
A idealizadora do Mulheres Inspiradoras, Gina Vieira Ponte, conta que, mesmo com a limitação a apenas 30 educadores, dezenas de outros professores participaram como ouvintes. Eles estiveram presentes no curso de formação para tentar descobrir formas de desenvolver em sala de aula, na chamada Parte Diversificada (PD), a metodologia proposta durante os 30 encontros de capacitação. “As escolas têm a liberdade de usar esse componente curricular da forma que melhor atender à comunidade. Trata-se de um projeto de identidade. Com ele, os alunos percebem que o ensino deve dialogar com a realidade.”
Além disso, a aplicação do projeto não precisa se resumir à disciplina de língua portuguesa ou da área de humanas. “O conteúdo pode ser aplicado só na disciplina de língua portuguesa ou de maneira interdisciplinar. O conteúdo das aulas é a leitura, interpretação de texto e a escrita autoral. O feminismo e as questões de gênero entram como temas transversais nesse processo”, explica Gina.
Ela acrescenta que as atividades executadas com base na iniciativa favorecem uma conexão dos conteúdos ensinados na escola com os contextos sociais dos alunos. Segundo a professora, com o Mulheres Inspiradoras, os estudantes se tornam protagonistas do processo de educação, fato que tira a centralidade do professor na sala de aula e torna o aprendizado um desenvolvimento coletivo.
 
Processo seletivo
O edital que estabelecerá a política pública teve como base o documento do ano passado. Segundo Renata Parreira Peixoto, diretora de Educação do Campo Direitos Humanos e Diversidade da Subeb, o processo seletivo ainda não tem calendário definido, uma vez que o edital está em fase de análise. A previsão é alcançar todos os estudantes da última série do ensino fundamenta até 2021. No edital que está prestes a ser lançado, mais duas coordenações regionais de ensino, de 14 que existem no DF, serão atendidas pelo projeto — além das seis contempladas no ano passado.
“Vejo um elemento muito potencializador nesse projeto, porque trabalha com minorias e identidade. A partir do momento em que trabalham histórias de mulheres inspiradoras, eles percebem que também têm, dentro do próprio núcleo familiar, mulheres inspiradoras, protagonistas, que despertam admiração dos próprios entes queridos. Essa transformação é fundamental nas escolas”, observa Renata. A diretora acrescenta que uma proposta de ampliação para alunos do ensino médio está em discussão.
Modelo que deu certo

O projeto Mulheres Inspiradoras foi pensado com foco em alunos de 9º ano. Em 2017, as escolas selecionadas para receber a iniciativa pertenciam a seis regiões administrativas do Distrito Federal. No entanto, no ato das inscrições, não houve professores suficientes para preencher as 30 vagas. Por isso, docentes de alunos do ensino médio puderam participar do processo seletivo e, posteriormente, do curso de capacitação. Foi o caso das professoras Dilvanice Carvalho e Luana Viana, do Centro de Ensino Médio (CEM) 1 do Riacho Fundo 1.
Dilvanice é professora de língua portuguesa. Já Luana ensina matemática, mas discutiu as obras lidas na disciplina de português por meio de debates nas aulas da Parte Diversificada (PD). No ano passado, as duas foram selecionadas e desenvolveram, de abril a dezembro, a metodologia do Mulheres Inspiradoras com turmas de 1º ano do ensino médio. “Eles tiveram resistência no início. Alguns chegaram a dizer que se tratava de ‘apologia ao feminismo’, mas, quando viram que o foco eram as leituras, debates e o desenvolvimento de um posicionamento crítico, começaram a se soltar. As produções escritas e as argumentações orais melhoraram, e tudo de forma natural, sem imposição”, diz Dilvanice.
Orientadora educacional do CEM 1, Denise Mold comenta que não apenas Luana e Dilvanice perceberam as transformações, mas outros professores também. A melhora foi além da notas. “No conselho de classe, comentava-se sobre uma mudança de postura. Os alunos estavam mais comportados e maduros. Agora, precisamos nos organizar para dar continuidade à proposta.”
Transformação
Estudante do 2º ano do ensino médio, Ana Carollina Nogueira, 15 anos, relata que não se sentiu interessada quando soube do projeto inicialmente. No entanto, depois das leituras, debates e tarefas dentro e fora de sala, o olhar da adolescente mudou. “Antes, eu não tinha uma mente muito aberta. Depois das aulas, mudei bastante minha forma de falar, pensar e enxergar o mundo. Não só ajudam com os conceitos para quando pedem nossa opinião, mas esses tipos também contribuem como lição de vida”, comenta a jovem, cujo livro favorito entre os propostos foi O Diário de Anne Frank.
Colega de classe de Ana Carollina, João Victor Rodrigues, 15, também viu benefícios na proposta. Ele afirma que a obra de que mais gostou foi Quarto de despejo: diário de uma favelada, livro de 1960, escrito por Carolina Maria de Jesus. “Fora da escola, podíamos acessar a sala virtual, para quando chegássemos em casa. A gente debatia e algumas pessoas compartilhavam histórias. Tirei muito proveito e pude perceber como a vida é mais difícil para uma mulher.”
Também alunas do 2º ano, Emily Camille Silva e Stefany Silva, ambas de 15 anos, se identificaram com as obras por se tratarem de relatos do ponto de vista feminino. “Foi uma experiência incrível, que me trouxe conhecimento sobre histórias de mulheres que eu não conhecia e se tornaram um espelho para mim. Parecia que os relatos eram meus”, analisa Emily. “Eles me ajudaram muito emocionalmente. Há várias outras pessoas tentando superar dificuldades. Eu não entendia muito sobre preconceito, mas, quando lia tudo o que elas sofriam, eu me identificava com as narrativas”, completa Stefany. (JE)

Conheça quem são as educadoras integrantes da equipe de Gestão e Formação do projeto Mulheres Inspiradoras:
Gina Vieira Ponte de Albuquerque 
Gina nasceu em Ceilândia. Dos 46 anos de idade, 38 deles foram dentro da escola pública: 11 como estudante e 27 como professora. É graduada em letras/português e respectiva literatura pela Universidade Católica de Brasília e mestranda em linguística pela Universidade de Brasília; especialista em educação à distância; desenvolvimento humano, educação e inclusão escolar; e letramentos e práticas interdisciplinares nos anos finais. Atua como professora efetiva da Secretaria de Educação desde abril de 1991. “Precisamos de uma escola que respeite a identidade do aluno, que garanta a ele o direito à aprendizagem e ao desenvolvimento, e que colabore para que ele abrace grandes projetos de vida.”
Ana Claudia Souza Dias
Ana Claudia sempre estudou em escola pública e atua como professora da Secretaria de Educação há 20 anos, tendo se dedicado à formação de leitoras e leitores da educação infantil ao ensino médio. Nasceu em Taguatinga e atuou em diversas regiões do DF. Foi aluna da primeira turma do curso de formação do projeto e o colocou em prática no CED 7 de Taguatinga. “Não é receita de bolo nem camisa de força. O professor é um intelectual transformador da própria prática pedagógica e o programa possibilita a valorização desses profissionais e o protagonismo dos estudantes no processo educativo.”
Bruna Paiva de Lucena
Bruna nasceu e cresceu em Brazlândia. Das escolas públicas da cidade saiu rumo à Universidade de Brasília, onde cursou graduação, mestrado e doutorado em letras e literatura. Neta e filha de duas mulheres do sertão, é mãe de uma menina e, hoje, dedica-se ao projeto como professora da Secretaria de Educação. Também trabalha como pesquisadora nas áreas de literatura, leitura, histórias de livros e biográficas. “O projeto propicia que a escola chegue de alguma forma à casa dos alunos. A partir do momento em que você conhece a história do seu colega, há diálogo e a construção de outras narrativas. Muita gente relatava que não lia. Por isso, a formação do leitor é nosso principal ganho.”
Cristiane Portela
Cristiane é historiadora, goianiense e mãe. Ela veio para Brasília em 2005 para trabalhar como professora da Secretaria de Educação. É mestre pela Universidade Federal de Goiás e doutora pela Universidade de Brasília, além de professora do curso de história do UniCeub e orientadora de mestrado na Universidade de Brasília. “Propomos uma metodologia de trabalho que articule as ações de gestão da política pública com a formação de professores e o estímulo à autoria nas ações que ocorrem lá na raiz: a sala de aula e o chão da escola, que são os lugares mais importantes e em que as mudanças efetivamente acontecem na educação básica.”
Valéria Gomes
Nascida e criada na periferia do Rio de Janeiro, onde foi aluna do sistema público de ensino, Valéria é professora da Secretaria de Educação desde 2009 e dedica-se, desde o início, à formação de leitores e escritores. Mestre em linguística pela Universidade de Brasília, teve como objeto de pesquisa o Mulheres Inspiradoras, no qual agora atua como articuladora e formadora. “Esse é um projeto que mobiliza pessoas em torno de um trabalho inovador com a escrita e a leitura, em articulação com temáticas urgentes. Ele mostra a força dos saberes construídos na prática diária de docentes, a partir de um exercício intelectual crítico que promove transformação.”

Memória
Incentivo à escrita autoral

O projeto nasceu com o objetivo de promover um estímulo à leitura e à escrita autoral e fortalecimento à interpretação de textos entre estudantes dos últimos anos da educação básica. A proposta consiste em trabalhar com os alunos obras  escritas por mulheres e que abordam temas como violência, racismo, empoderamento, diversidade, igualdade de gênero e representação feminina. O conteúdo programático pré-definido para escolas é mantido.
A professora Gina criou o projeto em 2013 e aplicou em cinco turmas para as quais lecionava língua portuguesa em 2014. No ano seguinte, deu continuidade à proposta, em sete turmas. Também fazia parte da proposta solicitar aos adolescentes que produzissem uma redação falando sobre uma mulher inspiradora na vida deles. Em março de 2016, os relatos dos alunos do  Centro de Ensino Fundamental (CEF) 12 de Ceilândia foram transformados em livro.


As obras

Veja quais são as sete obras literárias escolhidas para o programa no ano de 2018:
A mulher de pés descalços 
Scholastique Mukasonga
A outra face: história de uma garota afegã
Deborah Ellis
Diário de Bitita
Carolina Maria de Jesus
Metade cara, metade máscara
Eliane Potiguara
Não vou mais lavar os pratos
Cristiane Sobral
Ponciá Vicêncio
Conceição Evaristo
Um verso e Mei
Meimei Bastos
As escolas
Confira quais escolas desenvolveram o projeto no ano passado:
Ceilândia
» CED 7
» CEF 14
» CEF 20 (Voluntária)
» CEF 31
» CEF 34
» CEM 2 (Voluntária)
» CEM 12
» INCRA 9
» CILC
Gama
» CEF 1
» CEF 15
Plano Piloto
» Cean
» Cesas
Riacho Fundo
» CEM 1
Samambaia
» CEM 414
Taguatinga
» CED 7
» Cemab
O reconhecimento
O projeto foi reconhecido nacional e internacionalmente, confira as premiações:
Internacionais
» 1º Prêmio Ibero-Americano de Educação em Direitos Humanos (Organização de Estados Ibero-Americanos), 2017
» 1º WED Brazil (Women’s Entrepreneurship Day Organization), 2017
Nacionais
» 4º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos (Ministério da Educação e Secretaria de Direitos  Humanos da Presidência da República), 2014
» 8º Prêmio Professores do Brasil (Ministério da Educação), 2014
» 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero (Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República), 2015
Locais
» Medalha do Mérito Buriti (Governo do Distrito Federal), 2017
» 1º Prêmio Igualdade de Gênero na Cultura (Secretaria de Cultura do Distrito Federal), 2017
» 3º Prêmio Mulher Educadora Cidadã do Mundo (Sindicado dos Professores do Distrito Federal), 2015
» Prêmio Grandes Educadores (UniProjeção), 2017
* A iniciativa foi reconhecida também pelo Prêmio Professor Nota 10 como um dos 50 melhores trabalhos do Brasil em 2015, e foi finalista do Prêmio Cláudia, em 2017, concedido a mulheres da América Latina.
Para saber mais
O que são políticas públicas

De acordo com Ana Claudia Farranha, professora da Faculdade de Direito da UnB, uma política pública se trata de ação governamental com o objetivo de atender demandas que não são capazes de serem resolvidas pela sociedade nem pelo mercado. “São um conjunto de diretrizes para a resolução do problema e têm origem em demandas sociais. Não é qualquer tipo de demanda. É necessário ser um tema da agenda pública que requeira intervenção.” As etapas seguintes até a implementação envolvem tomada de decisão e formulação de instrumentos. Por fim, após a execução, é necessário avaliar os resultados.