PNE: faltam R$ 54 bilhões para as escolas públicas serem dignas

Em 27 de fevereiro, o professor da UnB (Universidade de Brasília), Luiz Araújo, defendeu na Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) sua tese de doutorado. Seu estudo calculou quanto o Brasil precisa investir para que todas as escolas públicas sejam dignas e garantam um padrão mínimo de qualidade. Conforme a pesquisa, em 2011, seria preciso que o país investisse cerca de 54 bilhões a mais nas escolas públicas de educação básica.
O tema da qualidade da educação pública é das principais preocupações da sociedade brasileira. No texto “Você colocaria seu filho para estudar embaixo de uma árvore?” argumentei que uma infraestrutura adequada nas escolas é um fator imprescindível para a qualidade da educação, além de ser um direito de alunos, familiares e professores.
O trabalho de Luiz Araújo utilizou o estudo do CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial) como referência. Desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o CAQi calcula quanto a educação pública custa por aluno ao ano, considerando salário inicial condigno, política de carreira e formação continuada aos profissionais da educação, número adequado de alunos por turma, além de insumos infraestruturais como: brinquedotecas, bibliotecas, quadra poliesportiva coberta, laboratórios de informática e laboratórios de ciências, etc.
Leia abaixo uma rápida entrevista com Luiz Araújo, abordando alguns temas de sua pesquisa intitulada “Limites e possibilidades da redução das desigualdades territoriais por meio do financiamento da educação básica”.
Daniel Cara – Qual seria o custo para a garantia da educação pública de qualidade no Brasil?
Luiz Araújo – Para fazer esse cálculo trilhei um longo percurso. Trabalhei com quatro simulações e todas elas utilizaram o CAQi como referência. Em 2011, para garantir que todas as escolas públicas tivessem um padrão mínimo de qualidade, o país precisaria investir R$ 54 bilhões a mais. Esse valor precisa ser atualizado anualmente. Infelizmente, os dados necessários para fazer as simulações eram os de 2011, temos esse problema de transparência e atualização dos dados no Brasil.
Cara – Como você chegou a esse número?
Araújo – Tomei como base o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação] e analisei as contas de todos os entes federados. Adianto que esse recurso novo precisaria vir da União. Sendo didático, em 2011 e para implementar o CAQi, a complementação da União ao Fundeb precisaria ser de R$ 63 bilhões. Como o Governo Federal transferiu cerca de R$ 9 bilhões, faltaram R$ 54 bilhões. Esse é o custo da garantia da qualidade.
Cara – Por que a complementação deve ser do governo federal?
Araújo – O Governo Federal é o que mais arrecada e menos colabora com a educação, especialmente com a educação básica. Mesmo sendo essa colaboração uma obrigação constitucional, prevista no parágrafo primeiro do artigo 211, trecho em que é tratada a colaboração federativa na educação, que é entre a União, os estados, o distrito federal e os municípios.
Cara – Por que você decidiu calcular quanto custa a implantação do CAQi em sua pesquisa?
Araújo – O CAQi é a materialização de padrão mínimo de qualidade para todas as escolas públicas brasileiras. Resolvi utilizá-lo como parâmetro porque ele incide diretamente na desigualdade da oferta educacional. Em outras palavras, ele estabelece um patamar socialmente aceitável para a garantia do direito à educação e força a elevação da qualidade das escolas nas regiões e nos municípios mais pobres do país, aproximando-as da situação de Estados como São Paulo. Acredito que um trabalho científico não pode ficar apartado do debate vivo travado na sociedade. E a sociedade brasileira tem exigido, cada vez mais, educação de qualidade. E para isso é preciso atacar a questão das desigualdades.
Cara – Quais seriam os benefícios da implementação do CAQi para a redução das desigualdades regionais?
Araújo – A implementação do CAQi causaria uma queda imediata de 12% na desigualdade de renda dos municípios, segundo simulações baseadas no coeficiente de Gini. Para ser imediata, esta queda é impactante. E seria provocada pelo aumento da participação das transferências do governo federal nas finanças municipais. O potencial do CAQi, como ferramenta de combate às desigualdades, é impressionante. O CAQi possibilita um caminho para que a redução das desigualdades territoriais seja travada em novo patamar.
Cara – Mais recursos para os estados e municípios não é um risco? Não há graves problemas de gestão nas prefeituras e nos governos federais?
Araújo – O CAQi também determina parâmetros que vão gerar maior pressão sobre os gestores estaduais e municipais. Os professores deverão receber o piso, ter política de carreira, formação continuada e escolas decentes para trabalhar. Os estudantes deverão ser respeitados, pois esses recursos novos permitiram escolas adequadas. O país ganha e o dinheiro não poderá ser desperdiçado, pois todos saberão o que é uma escola com o padrão do CAQi.
Cara – Quais Estados e municípios seriam beneficiados com a implementação do CAQi via transferências do governo federal?
Araújo – Meus estudos mostraram que mesmo Estados considerados ricos ainda não alcançaram o CAQi em algumas etapas e modalidades. Ainda assim, os principais beneficiados seriam os Estados do Norte e do Nordeste, pois eles estão muito longe do padrão mínimo de qualidade.
Cara – Na tramitação final do novo PNE (Plano Nacional de Educação) os deputados precisam escolher entre o texto da Câmara e a versão de PNE do Senado Federal. Com base na sua pesquisa, qual é a melhor alternativa?
Araújo – Com certeza é o texto da Câmara dos Deputados, apoiado pela sociedade civil. A versão do Senado significa inviabilizar a implementação do CAQi, pois esse mecanismo só é viável com a complementação de recursos do governo federal, essa é uma das conclusões da minha pesquisa. Só o texto da Câmara oferece essa possibilidade de participação do governo federal. E o governo federal teme exatamente isso: ter maior responsabilidade. Por isso, o Planalto optou pelo PNE do Senado, pois ele desresponsabiliza a gestão federal.
Cara – Nesse momento a educação se dedica à tramitação do PNE, mas em 2020 termina o Fundeb. É possível dizer qual seria a melhor alternativa para o futuro: o Fundeb como um sistema de 27 fundos estaduais ou um fundo único?
Araújo – Essa é uma pergunta muito importante, ou a mais importante. Falamos do Fundeb no singular, mas deveríamos falar no plural: são 27 fundos estaduais, com baixa participação da União. O Fundeb ainda é um modelo de financiamento desigual. Eu responderia sua pergunta de três formas.
Primeiro, se tivéssemos uma reforma tributária profunda em nosso país e uma repactuação federativa talvez não fosse necessário prorrogar o Fundeb ou criar alternativas baseadas em fundos, sejam elas de fundos estaduais ou de um hipotético fundo único.
Segundo, mesmo sendo necessária, a Reforma Tributária é uma agenda difícil. Sem ela, e querendo diminuir as desigualdades regionais para patamares menores do que os atuais, as alternativas estão atreladas a uma participação maior da União, como prevê a Constituição Federal e o texto de PNE da Câmara dos Deputados.
Assim, para resolver parte significativa do problema, mas sem Reforma Tributária, o país conta com o CAQi, desenvolvido pela sociedade civil. Para alcançá-lo precisamos de R$ 54 bilhões por ano a mais, só em educação básica. O CAQi pode ser implementado tanto pelo sistema atual de fundos estaduais, que é o Fundeb, quanto por um fundo único. Conceitualmente o fundo único é mais justo, mas os efeitos financeiros com um aporte maior do Governo Federal não são tão distintos. Isso eu calculei na minha pesquisa.
Terceiro, o objetivo do meu trabalho foi provocar um debate sobre novas bases de financiamento da educação básica, especialmente quanto à reformulação do Fundeb. Independentemente de qual será o modelo a ser adotado no futuro, o central é perseguir o padrão de qualidade e, pelo menos, o padrão mínimo de qualidade.
Cara – Para terminar, por que o CAQi ganhou destaque na agenda pública brasileira?
Araújo – Porque houve um persistente trabalho de convencimento realizado pela sociedade civil, especialmente pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação que foi quem criou o mecanismo. Além disso, a aceitação do CAQi pelos delegados e delegadas presentes na Conae (Conferência Nacional de Educação) de 2010 foi decisivo, porque ali ele ganhou legitimidade política. Isso foi decisivo para que o Conselho Nacional de Educação aprovasse uma proposta de resolução sobre o tema, concluindo o termo de cooperação com a Campanha. E isso é muito importante, mesmo diante do fato de que o CAQi ainda não foi homologada pelo MEC.
Além disso, durante a tramitação do PNE, a necessidade de maior participação da União e de medidas eficazes para diminuir as desigualdades territoriais apareceu com força. Nesse momento, mais uma vez, a Campanha [Nacional pelo Direito à Educação] persistiu. Foi assim que o CAQi se firmou como um dos instrumentos para resolver este problema. Sinceramente, espero que o meu trabalho ajude a consolidá-lo como este parâmetro redistributivo. E é gratificante ver que uma construção da sociedade civil, tão bem elaborada tecnicamente e cuidada politicamente, tenha o poder de transformar o Brasil em um país mais justo. Trilhar esse caminho propositivo é o desafio para a sociedade civil aqui e em qualquer lugar do mundo.
*Daniel Cara é coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, bacharel em Ciências Sociais e metre em Ciências Políticas pela USP
Fonte: UOL