Artigo: “O que está em jogo no golpe de Estado no Brasil?”

Em artigo para a Global Union University (GLU), o professor Antônio Lisboa – secretário de Relações Internacionais da CUT Brasil e representante dos trabalhadores no Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – afirma que a atual crise política do Brasil se acirrou no dia seguinte após a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, com mais de 54 milhões de votos, em outubro de 2014.
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Para Lisboa, a direita incorfomada com a derrota nas urnas vem, desde 2015, fabricando escândalos e divulgando inúmeras mentiras pelos meios de comunicação como se fossem verdades absolutas com vistas a tornar o golpe possível.
“O golpe – que é acima de tudo uma tentativa de barrar o processo de mobilidade social e desenvolvimento nacional visto até então – foi elaborado a partir da ação diária do oligopólio de mídia com o apoio financeiro da indústria, do setor de finanças e do agronegócio”, afirma o professor, enumerando as diversas e nefastas iniciativas do governo interino-golpista sobre as políticas sociais.
Por isso mesmo, relata Lisboa, “a CUT não reconhece o governo Temer e o considera ilegítimo, pois é fruto de um golpe de Estado e de um processo de impeachment ilegal, além de desconsiderar a vontade expressa da maioria dos cidadãos brasileiros que elegeu a presidenta Dilma – o único governo eleito e, portanto, o único legítimo. Nós não vamos aceitar que a classe operária e os setores mais pobres da população façam ainda mais sacrifícios. Lutamos contra o golpe até agora e continuaremos lutando nas ruas e nos locais de trabalho para trazer o país de volta ao Estado de Direito e à Democracia, opondo-nos à redução dos direitos dos trabalhadores e às iniciativas que procuram colocar o Brasil em um papel subordinado à economia internacional”.
A Global Union University é um programa de pós-graduação em nível de mestrado desenvolvido pelas Universidades de Kassel e Berlin (Alemanha), Johanesburgo (África do Sul), Mumbai e Nova Deli (Índia), Pensilvânia (EUA) e Unicamp (Brasil). Destina-se a preparar dirigentes e assessores sindicais para os temas relativos ao mundo do trabalho. Antônio Lisboa integra a direção da GLU.
Confira, abaixo, a íntegra do artigo.

O que está em jogo no golpe de Estado no Brasil?

A atual crise política brasileira vem sendo gestada desde o dia seguinte à reeleição da presidenta Dilma Rousseff – eleita por mais de 54 milhões de brasileiras e brasileiros em outubro de 2014 e que significou a quarta vitória consecutiva das forças progressistas do país nas eleições presidências.
Em primeiro lugar, a direita nacional, mais uma vez derrotada, pediu a recontagem dos votos. Depois, tentou reprovar as contas da campanha da presidenta reeleita e patrocinou diversas outras manobras até chegar ao impeachment. Durante todo o ano de 2015 até agora, foram sendo criados “escândalos” amplamente divulgados pela mídia, conferindo veracidade a centenas de mentiras. A arquitetura do golpe foi elaborada, portanto, a partir da ação diária do oligopólio da mídia (no Brasil apenas seis famílias detêm 80% da informação – TVs, jornais, revistas, rádios, agências de notícias, sites na internet…) com o apoio financeiro do empresariado dos ramos financeiro, industrial e do agronegócio.
Essa direita que conspirou abertamente contra o mandato da presidenta eleita é resultado do secular passado escravista e reacionário que marca a história nacional, assim como herdeira legitima dos setores sociais e econômicos responsáveis historicamente por esse regime. Ao chegarem ao país, essas elites tomaram de assalto nossas terras e riquezas. Os africanos, capturados em suas terras, eram trazidos à força para a América Portuguesa, e tornaram-se, inicialmente, mão-de-obra fundamental nas plantações de cana-de-açúcar, tabaco e algodão. Mais tarde isso se repetiu nas vilas e cidades, minas e fazendas de gado. A classe socialmente dominante, composta por uma minoria branca, justificava essa condição por ideias pseudo-religiosas e racistas que “legitimavam” sua pretensa superioridade e os seus privilégios.
As diferenças étnicas funcionavam como barreiras sociais. A escravidão no Brasil foi uma experiência de longa duração. Os seres humanos escravizados foram, por mais de três séculos, a principal mão-de-obra da economia nacional – o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Mais que uma atividade econômica na qual o indivíduo é propriedade de outro, a escravidão fixou um conjunto de concepções em relação ao trabalho, às pessoas e às instituições. Constituindo-se, dessa forma, em uma cultura preconceituosa e escravocrata que persiste até os nossos dias. O que definia e caracterizava a elite colonial era aquilo que ela não fazia – o trabalho manual sempre foi visto como atividade menor, coisa dos gentios e dos escravos – desejável era viver de alugueis, benesses públicas e da renda dos grandes latifúndios.
A elite brasileira ainda insiste em um capitalismo selvagem e não aceita que negros, pobres, mulheres, indígenas, homossexuais, moradores de periferias e favelas tenham acesso ao respeito e à dignidade. As raízes da apartação social se manifestam pelo ressentimento vivenciado por grande parte da classe média que se identifica com a parte de cima da pirâmide social e que enxerga seus privilégios como direitos. Esse grupo nutre a segregação e não aceita as mudanças ocorridas nos últimos 12 anos, desde a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2003. Quer manter privilégios, julga e deseja que existam pessoas disponíveis ao subemprego e à exploração, acredita que aeroportos, shopping centers e universidades são espaços sociais exclusivos da elite branca e rica.
O projeto representado pelos governos de Lula e Dilma foi responsável pela ascensão social de mais de 40 milhões de brasileiros, a criação de mais de 20 milhões de empregos formais e pela implementação de um novo modelo de desenvolvimento social e econômico mais justo e que priorizou o fortalecimento do mercado interno, ao mesmo tempo em que intensificava as relações entre os países da América Latina, África e era protagonista na criação dos BRICS.
O golpe, nesse sentido, trata-se, sobretudo, de uma tentativa de interromper esse amplo processo de ascensão social e desenvolvimento nacional soberano. Em detalhe, podemos destacar três objetivos mais específicos dessa tentativa. Em primeiro lugar, impedir que o país aumente seu protagonismo na região e no mundo, seja pela participação no bloco dos BRICS, seja como “player” global, com atuação destacada na ONU e demais organismos internacionais. Freiar o crescimento do país no cenário internacional é a estratégia dos EUA, que obviamente quer continuar a ter a América Latina como seu quintal. O segundo objetivo é obrigar o país a entregar suas extraordinárias riquezas naturais, especialmente suas reservas de água e as enormes reservas petrolíferas da camada do pré-sal, recentemente descobertas. O terceiro objetivo é a retomada, pela direita, do governo nacional por meio do parlamento conservador eleito em 2014, já que pelo voto popular não o consegue.
Para atingir todo esse conjunto de objetivos, o golpe envolveu e articulou uma ampla coalização de atores nacionais e internacionais. No primeiro momento, o golpe foi capitaneado pelo candidato derrotado da oposição de direita, Aécio Neves. No entanto, hoje, as três peças-chaves do golpe parlamentar, jurídico e midiático são: a primeira, Eduardo Cunha, afastado da presidência da Câmara dos Deputados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro, com milhões de dólares em contas na Suíça e réu por corrupção no STF. A segunda, setores do judiciário que através de investigações, vazamentos seletivos e ações espetaculosas e midiáticas contribuíram para uma ruptura da ordem democrática e institucional. E, por último mas não menos importante, o capital nacional e internacional que, através de seus representantes – como confederações e federações patronais, grandes meios de comunicação, partidos políticos conservadores e de direita e apoiados, de maneira entusiasmada, pela parcela mais rica da sociedade brasileira – e alinhados com os interesses geopolíticos dos países ricos, buscam reduzir o custo da mão de obra na economia brasileira e, como já destacamos, entregar nossas riquezas nacionais.
O golpista Michel Temer, como seu primeiro ato de interinidade, extinguiu, dentre outros ministérios, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, os Ministérios do Desenvolvimento Agrário – responsável pela agricultura familiar e a reforma agrária – da Cultura – recriado após um amplo movimento da classe artística nacional – Ciência e Tecnologia e o da Controladoria Geral da União – responsável pela transparência e combate à corrupção.
Importante destacar também, que o ministério interino é composto por sete ministros investigados no âmbito da Operação Lava Jato e não possui, pela primeira vez, desde a Ditadura Militar, nenhuma mulher – assim, como nenhum jovem; negro; minorias e também representantes dos movimentos sociais e sindicatos. Até o momento, em apenas um mês, três ministros do governo golpista, foram obrigados a se demitirem por conta de graves e reiterados casos de corrupção. O próprio Michel Temer é acusado por um dos delatores da “Operação Lava Jato” de negociar o recebimento de 1,5 milhões de reais em doação ilegal para um aliado político que concorreu nas eleições municipais de 2012. Temer também é citado em um caso que envolve o recebimento de 5 milhões de reais de outra empreiteira envolvida na “Lava Jato”.
O governo golpista, em questão de poucos dias, anunciou ou sinalizou uma série de retrocessos gravíssimos nas políticas sociais, tais como: a insistência em uma Reforma da Previdência que dificulte ainda mais o acesso dos trabalhadores à aposentadoria e reduza os seus benefícios; reforma trabalhista que torne os direitos garantidos pela CLT em objeto de negociação, prevalecendo o negociado sobre o legislado; redução do tamanho do Sistema Único de Saúde; cobrança de mensalidades em cursos de extensão e de pós-graduação nas universidades públicas; cortes no programa Bolsa Família que poderiam atingir até 30% dos beneficiários; fim de programas habitacionais para a população de baixa renda, geridos em parceria com movimentos sociais; ataques ao direito democrático de manifestação; e política externa submissa aos interesse dos grandes impérios, através de hostilidades com os governos latino-americanos democraticamente eleitos que não reconhecem a legitimidade deste governo golpista.
No mais grave ataque aos direitos sociais desde a promulgação da constituinte de 1988, o governo golpista pretende que os investimentos em saúde e educação sejam corrigidos, por um prazo de dez anos, apenas pela variação da inflação do ano anterior. Caso essa regra estivesse valendo desde 2006, o orçamento federal da saúde seria hoje 30% menor e o da educação sofreria com um corte brutal da ordem de 70% – vale lembrar, que essa regra, proposta pelo governo interino, também iria incidir nos orçamentos dos governos estaduais e prefeituras municipais. Seria a destruição dos nossos sistemas públicos de saúde e educação.
Dessa forma, podemos afirmar que o impeachment da presidenta Dilma Rousseff significou uma tentativa desesperada de implementar um programa mais duro e antipopular do que aquele que foi sistematicamente derrotado nas últimas quatro eleições presidenciais. Os eleitores e, sobretudo, aqueles mais pobres, não contam nos cálculos da junta golpista – apenas um governo fruto de um golpe poderia propor medidas tão desconectadas dos interesses manifestos da imensa maioria da população. O povo brasileiro espera maior investimento nas áreas sociais, especialmente em saúde e educação, e rechaça mudanças na legislação trabalhista e na previdência social que signifiquem retirada de direitos.
A CUT não reconhece o governo Temer e o condena como ilegítimo, por ser resultado de um processo ilegal e golpista de impeachment e por desrespeitar a vontade expressa da maioria dos cidadãos brasileiros que elegeu, em 2014, a Presidenta Dilma – único governo eleito e, portanto, legítimo. Não aceitaremos que a classe trabalhadora e os setores mais pobres da população tenham que sofrer ainda mais sacrifícios. Lutamos até agora contra o golpe e continuaremos lutando, nas ruas e nos locais de trabalho, para reconduzir o país ao Estado de Direito e ao regime democrático, contra a retirada de direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras e contra iniciativas que busquem a inserção subordinada do Brasil na economia internacional.
>>> Original em inglês