No interior de MG, um exemplo dos desafios do movimento estudantil

“Com 13 anos comecei a trabalhar numa fábrica de fraldas descartáveis. Já trabalhei também como cabelereira. E revendedora de cosméticos. E em papelaria. E numa concessionária de veículos. E como agente de saúde da dengue. Do centro de zoonoses. E na roça, mas isso nem conta porque só foram três dias. Comecei a cursar ciências sociais, mas não deu certo. Agora estou aqui”.
Ouvia, entre interessado e espantando, o relato da estudante, dez anos mais jovem que eu, até chegar à faculdade pública de direito sem jamais ter ouvido falar em vestibular durante o ensino médio e o fundamental. “Os professores tinham tanta certeza de que a faculdade não era pra gente que pediam apenas para que a gente não engravidasse e arranjasse logo um emprego.”
Eu tinha acabado de falar a uma plateia de estudantes e professores da unidade em Frutal da Universidade Estadual de Minas Gerais. No encontro, tentei abordar algumas impressões sobre um novo mundo que parecia emergir – um mundo mais conectado, mais ágil, com mais acesso ao conhecimento e, justamente por isso, mais complexo, diversificado e menos propício à obediência cega das vozes de comando, da centralização das decisões e da ignorância política.
Ao fim do debate, fui convidado para jantar com alguns estudantes do Diretório Acadêmico cujo slogan é “Viver é Melhor que Sonhar”. Na mesa, ao ouvir os relatos de cada um deles, senti que aquele mundo previsto já estava em curso. Só não havia sido noticiado.
Aquela estudante havia acabado de contar sobre a saída do corpo docente de um professor de direito civil conhecido por não entender nada da disciplina. Sempre quando questionado pelos alunos, ele respondia que se preparava para as aulas com uma “lida por cima” nos assuntos. Tinha tanto conhecimento sobre direito civil quanto eu tenho de engenharia naval. Havia relatos de estudantes que entregavam as provas em dois minutos e recebiam nota 9.
Cansados, os estudantes daquela turma começaram a pesquisar sobre o tema e organizaram aulas paralelas fora da sala. As rodas de aula atraíram mais estudantes do que as aulas do professor, que ficou sem ter a quem enganar. Sua permanência na faculdade tornou-se insustentável.
Antes, cerca de um ano atrás, aqueles estudantes tinham conseguido mobilizar a comunidade acadêmica e sensibilizar a cidade de 57 mil habitantes para emplacar mudanças no comando da unidade. Lá, um velho diretor, ligado a um político local, manteve as rédeas desde a criação da faculdade, há quase uma década.
Pressionado, aceitou deixar o cargo por meio de uma manobra: na surdina, reuniria os coordenadores do curso e emplacaria um aliado por meio de uma eleição de cartas marcadas. Os estudantes, quando souberam da estratégia, foram aos representantes do Diretório Acadêmico prometendo um escarcéu.
“O alto-falante está aí em cima da mesa. Vocês estão esperando o quê?”, disse um dos secretários do DA.
Naquele dia os estudantes protagonizaram uma série de ocupações, manifestações e assembleias até que a direção aceitasse realizar uma eleição de fato. Foram sete dias de mobilização, que incluíram conversas ásperas com a própria reitoria, instalada numa sala da Cidade Administrativa, sede do governo mineiro, em Belo Horizonte. Um dos argumentos contra a eleição era o de que a universidade não tinha tradição em….eleições. “Pois agora vai ser diferente”, respondeu um dos manifestantes. E foi.
Vencida a batalha, com uma comissão eleitoral formada, faltava convencer professores e funcionários a não ceder às pressões em curso da direção. Em um dos encontros, a irmã do diretor, que se infiltrara entre os ouvintes, pediu a palavra. Entre outros impropérios, soltou um “se ele é um ditador, é um ditador que ama essa faculdade”.
Ficou tão difícil apoiar o candidato que não queria eleição que a vitória dos estudantes foi acachapante. Nas primeiras eleições diretas da UEMG, eles elegeram um jovem professor que, diferentemente do antecessor, tinha credenciais acadêmicas e história na universidade.
Graças a mobilizações como esta o Diretório Acadêmico conseguiu organizar uma série de debates com convidados para refletir sobre assuntos variados. Foi aí que entrei na história, graças a um generoso convite para falar sobre meu tempo de universitário e meu trabalho, hoje, como jornalista.
Em minha fala, tentei dizer, com outras palavras, que de nada valeria o diploma universitário se ele não fosse utilizado como ferramenta de transformação da realidade. Mas que de nada valeria a vocação para mudar a realidade se, dentro do ambiente universitário, professores e alunos seguissem reproduzindo as assimetrias e violências do mundo afora.
Meu apelo chegava com atraso: na saída, fui apresentado a duas jovens que acabavam de fundar um coletivo feminista para debater temas como assedio e visibilidade. O coletivo estava conectado com movimentos estudantis similares mundo afora. Estudantes narravam com empolgação a presença de colegas negros na faculdade, mas relatavam dificuldades para perseverar no curso enquanto faltavam subsídios e serviços básicos como transporte, moradia e alimentação para quem não tinha condições financeiras ou carro próprio. Nessas, os estudantes negros, vindos dos lugares mais pobres, eram os primeiros a deixar o curso.
Os desafios, concluíam os estudantes, ainda são muitos. Poderiam ser observados logo na entrada da unidade: uma via de terra, irregular, esburacada e enlameada em dias de chuva. Ao fundo do prédio central era possível visualizar os esqueletos dos prédios que acolheriam novos cursos e novos estudantes. As obras, porém, estão paradas.
Apesar das dificuldades, todos na mesa pareciam dominar uma linguagem que eu, pelo menos, levei anos para conhecer. Falavam de relações igualitárias, relação abusiva, compartilhamento, decisões horizontalizadas, homofobia, normatividade, etc. Não demonstravam o ranço das simpatias e antipatias partidárias da minha geração que travam hoje qualquer tentativa de consenso.
À minha frente, a estudante que veio de longe e trabalhava desde os 13 anos falava da mãe e do trabalho. Em casa, contava, as tarefas eram divididas igualmente entre ela e o irmão. O pai era o maior exemplo para alcançar, desde cedo, sua dependência financeira e afetiva de qualquer homem: ele dera no pé quando os filhos eram pequenos. A história dera origem, na mesa, a um debate sobre desigualdade de gênero num país onde só os homens têm pleno domínio sobre o próprio corpo e suas decisões.
A estudante de direito e militante trabalha hoje numa delegacia. Diz que está cansada de ver mulheres agredidas serem constrangidas por agentes de segurança que perguntavam a elas o que haviam aprontado para apanhar tanto. Quando ela e os amigos de luta estiverem no comando, perguntas como esta, a exemplo de ditadores tolerados por amarem sua faculdade (ou sua pátria), estarão com os dias contados.
(da Carta Capital)