Gestão compartilhada não é democrática

A escola, em geral, apresenta um discurso favorável à democracia. Mas, como dizia Paulo Freire, “é necessário que nossas falas sejam corporificadas pelo exemplo”, ou seja, que nossas práticas não sejam negadoras daquilo que defendemos. A escola não pode prescindir da democracia, da cidadania, da participação, da autonomia, do pluralismo e da transparência. Para o Sinpro a gestão democrática faz parte da própria natureza do ato pedagógico. Ela se fundamenta numa concepção democrática da educação, contra uma concepção centralizadora e autoritária. A gestão democrática escolar é, portanto, uma exigência do próprio projeto político pedagógico.
O Sinpro historicamente fez a defesa da eleição direta como critério para a escolha de diretores/as escolares, por considerar essa é a forma a mais democrática, mais oportuna e mais viável opção. Se a pretensão é um/a diretor/a com funções mais políticas, não é a aferição do conhecimento técnico em administração a que se precisa proceder, mas a escolha, dentre os/as educadores/as, daquele/a com maior comprometimento político e capacidade de liderança diante da comunidade escolar e local. Todavia, é fundamental compreender que a eleição de diretores/as não pode ser tomada como uma panacéia que resolverá todos os problemas da escola e muito menos, em particular, os de natureza política.
Para propiciar um debate mais aprofundado sobre a gestão das escolas, publicamos abaixo dois textos, um que contextualiza a chamada “gestão compartilhada” no processo de mercantilização da educação e outro que elenca os pressupostos que fazem a verdadeira gestão democrática.

GESTÃO COMPARTILHADA

A gestão compartilhada foi implantada no Estado do Paraná durante os últimos governos conservadores. Esse é um modelo de gestão adequado a uma concepção de “Estado mínimo neoliberal”, que se revela como uma das faces da reestruturação do capitalismo, sobretudo, nas últimas duas décadas. Sob o pretexto da democratização e modernização da gestão escolar, o que essas políticas têm feito é negar a educação escolar por meio de sua gestão.
Foi no governo Lerner (l995-l998), que se introduziu a concepção de gestão compartilhada, em oposição às formas anteriores, que, até então, sempre nominaram o modelo de gestão escolar assumido como sendo o de “gestão democrática”. O plano de ação para a educação do governo do Estado do Paraná foi o primeiro documento a fazer referência e definir as bases da gestão compartilhada compreendendo-a como caminho para a excelência na educação.
Na verdade, a denominação gestão compartilhada não é apenas utilizada pelo governo do Estado do Paraná (vide Brasília). Trata-se de uma terminologia recorrentemente utilizada por todas as instituições, pessoas e governos que lançam mão do referencial da gestão de qualidade total (GQT) aplicada á educação. A GQT tem sua origem no setor produtivo e baseia-se em alguns conceitos como: processo, produto, cliente, fornecedor e produtividade.
Esses conceitos foram transplantados para o setor educacional, com os mesmos princípios, significados e terminologias utilizadas nos textos destinados especificamente ao setor produtivo. Esse fator aponta um movimento de transposição linear da lógica empresarial para o setor público. Tudo isso potencializa a consciência competitiva e individualista e não a consciência igualitária.
Historicamente, a aplicação dos princípios e métodos da empresa tem sido defendida pelos interessados no desenvolvimento do mercado, mesmo com prejuízos do desenvolvimento humano, ou por aqueles que, ingenuamente, acreditam que a “eficiência” da administração capitalista pode ser transplantada para a escola, mediante a cópia de seus métodos e técnicas sem prejuízo do caráter humano-formador da educação. Esta tendência de administração escolar costuma tratar a escola como mais uma empresa, ainda que diferente da empresa comercial comum, mas passível de adaptar-se aos mesmos princípios e métodos administrativos aplicados nesta última. Esse procedimento desconsidera o fato de que os objetivos da escola, pensada como instância sistematizada da apropriação da cultura, não são apenas diferentes, mas antagônicas aos da empresa capitalista.
Essa tendência de administração da escola, a partir de parâmetros empresariais, já há muito presente na teoria e na prática escolar, avalia que a gestão compartilhada é um excelente meio para fazer avançar a privatização do ensino. Essa privatização não se dá nos mesmos moldes da passagem de empresas públicas para o setor privado, mas fundamentalmente na retirada do Estado de sua responsabilidade pelo ensino, jogando sobre os usuários o ônus de seu financiamento.
Essa tentativa de desmanche do caráter público da instituição vai até o menosprezo ao Conselho Escolar, órgão historicamente articulado à reivindicação e a participação dos diversos setores na gestão escolar e a hipervalorização da Associação de Pais e Mestres como arrecadadora de recursos da comunidade para suprir as necessidades não providas pelo Estado.
A concepção de gestão compartilhada está intimamente ligada às diretrizes dos organismos multilaterais, dentre os quais, o Banco Mundial tem se mostrado o de maior expressão e influência, para tal compreensão basta ler o texto “Prioridades y estratégias para la educación”: estudo sectorial del Banco Mundial, datado de l995. A descentralização administrativa, característica integrante das reformas educacionais propostas pelos organismos multilaterais, prevê a autonomia da escola apenas em nível de execução, somente descentraliza as tarefas rotineiras do processo educacional.
Ao configurar-se a gestão compartilhada como uma estratégia para criar um consenso favorável dentre os membros da comunidade escolar, de que, o referencial de êxito de uma escola está relacionado com o fato da comunidade assumir financeiramente a escola, caracteriza-se a gestão compartilhada como uma política de privatização da escola pública, de acirramento das desigualdades sociais, adequada à configuração neoliberal que o capitalismo tem assumido nesses tempos de reestruturação produtiva.
A partir das análises efetuadas até aqui firma-se a compreensão de que as orientações presentes na proposta da gestão compartilhada estão articuladas a uma concepção de “democracia mínima neoliberal”, onde o Estado se afasta paulatinamente de suas obrigações para com a manutenção e o desenvolvimento de atividades educacionais, passando-as para a comunidade.
A escolha do diretor pela comunidade escolar é mantida, não por princípios democráticos, mas porque garante o vínculo e a proximidade da comunidade com a escola, o que facilita o comprometimento financeiro da escola pela comunidade, além de garantir que o diretor/a tenha como pressupostos os princípios da gestão compartilhada, devido ao teste escrito.
Firma-se desse modo, a necessidade de contrapor a proposição de gestão compartilhada, pelos motivos expostos até aqui. Este texto apresenta-se como um esforço de explicitação das intenções desse modelo excludente de gestão escolar que se diz democrática.

GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA

Na primeira metade da década de l980, no caminhar rumo à redemocratização da sociedade brasileira, cresce junto à sociedade civil a idéia-força que, para democratizar a sociedade, passa necessariamente pela democratização da educação e esta pela gestão democrática escolar. É, portanto, no bojo da ampla luta pela redemocratização, que se formula, no seio da Educação, a noção de democratização da educação, compreendendo a gestão democrática escolar.
Entre os princípios que devem nortear a educação escolar, tantos os contidos na Constituição Federal de l988, em seu artigo 20
6, quanto os assumidos no artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como LDB, Lei de nº 9.394/96, consta explicitamente, o princípio da gestão democrática do ensino público, na forma da lei e das legislações dos sistemas de ensino e no seu artigo 15, define os princípios da gestão democrática:
I- participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II- participação das comunidades escolar e local em Conselhos de Escola ou equivalentes.
A gestão democrática é ratificada também no Plano Nacional de Educação (PNE-2001); e, no caso do DF, a Lei Orgânica do Distrito Federal promulgada em 1993, em seu artigo 222 refere-se à obrigação do Poder Público de assegurar a gestão democrática do ensino público, com a participação de todos os segmentos envolvidos no processo educacional, apesar de omitir qualquer referência à forma a ser utilizada para a escolha de dirigentes escolares.
Na compreensão de Gadotti (2004:35) existem no mínimo duas razões, que justificam a implantação de um processo de gestão democrática na escola pública:
1ª) A escola deve formar para a cidadania, e, para isso, ela deve dar o exemplo. A gestão democrática da escola é um passo importante para o aprendizado da democracia. A escola não tem um fim em si mesmo. Ela está a serviço da comunidade. Nisso, a gestão democrática da escola está prestando um serviço também a comunidade que a mantém.
2ª) A gestão da escola pode melhorar o que é específico da escola, isto é, o seu ensino. A participação na gestão da escola proporcionará um melhor conhecimento do funcionamento da escola e de todos os seus atores […]
Gadotti (2004), compreende que a gestão democrática deve estar impregnada por uma certa atmosfera que se respira na escola. Ele enumera várias atividades que caracterizam esse clima, da qual destacamos a questão da circulação de informações e a capacitação dos recursos humanos. Para ele, gestão democrática é atitude e método. A primeira é necessária, mas não suficiente. “Precisamos de métodos democráticos de efetivo exercício da democracia. Ela também é um aprendizado, demanda tempo, atenção e trabalho”.
A gestão democrática tem sido bastante investigada na área educacional. Ela é objeto de inúmeros debates, reflexões e interpretações muita vezes contraditórias.
Para Gracindo (2005:1), “a gestão democrática pode ser considerada como meio pelo qual todos os segmentos que compõem o processo educativo participam da definição dos rumos que a escola deve imprimir à educação e da maneira de implementar essas decisões, num processo contínuo de avaliação de suas ações”. De acordo com a autora “para a concretização do Estatuto da Gestão Democrática, estabelecido em lei, exige-se entre outras coisas, a criação de espaços propícios para que novas relações entre diversos segmentos escolares possam acontecer. Neste sentido, o Conselho Escolar surge com um desses espaços que, juntamente com o Conselho de Classe, o Grêmio Estudantil e a Associação de Pais e Mestres, desempenham um papel importante na prática democrática.
Antunes (2005:31) contribui para o debate sobre gestão democrática colocando que um dos caminhos é superar o elenco de medidas pontuais, isoladas, no sentido de favorecer o exercício da democracia no dia-a-dia da escola. A gestão democrática não se constrói, reservando, ao longo do ano letivo, um dia específico para o exercício da participação. Muitas campanhas estimulam o “dia da cidadania”, o “dia da família na escola”, mas acabado o dia, não dão continuidade às ações. A democracia não é incorporada no cotidiano da escola por meio de ações isoladas. Ela precisa estar presente no currículo da escola, na participação da comunidade no projeto político-pedagógico, no dia-a-dia da sala de aula, na relação que o professor estabelece com o aluno, na escolha dos conteúdos, na relação da merendeira com os alunos, na relação da direção com a comunidade, na forma com a escola lida com as diferenças, na forma como lida com os conflitos, etc. É necessário um trabalho permanente para desmontar as bases do poder autoritário, das relações de desrespeito, do medo, do clientelismo, do patrimonialismo, da discriminação, enfim, é necessário um investimento em ações continuadas que criem condições de materialização da democracia e da cidadania no dia-a-dia da unidade educacional.
Considerando-se as experiências já vivenciadas em relação à democratização da gestão escolar, Gadotti (2004) aponta alguns pressupostos e parâmetros que ele entende que favorecem a obtenção da democratização e consequentemente, uma escola de melhor qualidade:
1º) capacitar todos os segmentos: principalmente quando se trata de uma população que, historicamente, tem sido alijada dos processos decisórios de seu país. As experiências revelam que tanto a comunidade externa, quanto a comunidade interna à escola apresenta limites à participação. Para o efetivo exercício da gestão democrática da escola é necessário capacitar todos os segmentos;
2º) institucionalizar a gestão democrática: a consulta e a participação das comunidades escolares possibilitam aos governos encaminharem ao Poder Legislativo Projetos de Lei mais consistentes, que atendam às reais necessidades educacionais da população;
3º) lisura nos processos de definição da gestão: para que se garanta transparência e respeito aos princípios éticos nas ações relacionadas à gestão democrática – escolha dos dirigentes escolares, implantação dos conselhos escolares e na gestão da instituição educativa – todos os cuidados devem ser tomados pela comunidade escolar e pelas instituições e pessoas envolvidas nesse processo: garantir a todos e todas acesso às informações, fixar, democraticamente, as normas e mecanismos de fiscalização, etc.
Portanto, pode-se perceber a importância da gestão democrática para a democratização da educação. Diante disso, faz-se necessário compreender que as eleições diretas para dirigentes escolares e o conselho escolar, são basilares na democratização da escola, como elementos essenciais, como instrumentos privilegiados de participação coletiva, tornando-se imprescindível, primeiramente, a compreensão das suas competências, funções, além das mais variadas concepções.