“Escola sem Partido”: trocando em miúdos

 
*Lúcia Ivanov
O povo brasileiro, desde pequeninho, é ensinado a não gostar de política e a detestar partidos. Isso tem feito, historicamente, a maioria abrir mão de participar das decisões que afetam sua própria vida, permitindo que aquela parte da sociedade que sempre formou a elite domine a economia, a imprensa, a Justiça, o País, enfim.
Não que essa elite não tenha seus partidos: esses partidos mudam de nomes de vez em quando, mas sempre existiram. Há famílias ricas que mantêm seus representantes no parlamento há cerca de 190 anos, ou seja, desde que o parlamento existe, sempre eleitos com os votos de quem não gosta de partidos ou acha que todos os políticos são iguais.
Por isso, temos deputado e senador Fulano de Tal Filho, Neto, Júnior, Sobrinho, Bisneto. Sim, a maioria no masculino, já que as mulheres, sendo 51% da sociedade, não chegam a ser 10% do Congresso Nacional, por exemplo.
A escola pública e a divisão social
Esse jeito de a maioria do povo encarar a política tem sido eficiente meio de exclusão e, ao mesmo tempo, de manutenção da minoria no poder, sendo a escola, ao longo dos séculos, instrumento de reprodução desse tipo de divisão social.
Mas muitas professoras e muitos professores vêm dedicando suas vidas a tornar o espaço da escola pública um organismo vivo, pleno de democracia, de civilidade, de criatividade, de educação e cultura e de convivência fraterna entre as diferenças e, sobretudo, de combate a todos os tipos de violência.
O resultado é alunas e alunos se sobressaindo, até mundialmente, vencendo em áreas antes povoadas, apenas, pelos de origem muito rica.
Por isso mesmo, prepostos dessa mesma elite, que se sente ameaçada pelos avanços propiciados pela escola pública, num exercício crueldade sem limites e aproveitando-se da boa fé das pessoas, estão tentando fazer uma proposta chamada “Escola sem Partido” se transformar em lei.
E há muitas/os embarcando em mais esta armadilha, pensando que tal proposta significaria “escola sem PMDB, PP, PCdo B, sem PSB, sem PSOL, sem PT, etc..” Para essa gente, seria uma escola neutra, partidariamente, como tão bem aprendeu.
É isso que querem que o povo pense. Então é preciso dizer, gritar que não é assim!
Desvendando a proposta
Trata-se, isto sim, de uma proposta de escola pública contrária aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, principalmente os que se referem ao dever de construir uma sociedade livre, justa e solidária, que promova o bem de todos e todas, sem preconceitos de origem, raça, religião, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Trocando em miúdos, o que essa gente quer é escola pública sem interpretação de texto; sem interpretação crítica de sua própria realidade; sem História do Brasil; sem História Geral; sem Geografia; sem Filosofia; sem debate; sem cineclube; sem eleições democráticas; sem direito ao contraditório; sem vida inteligente, sem alegria!
Um ‘paraíso’ que perpetue a exclusão social: trabalhadoras/es em educação amordaçados e estudantes embrutecidos.
Escola contrária ao respeito a quem a frequenta
É escola pública proibida de mostrar de que raças o Brasil é feito e de debater a política transitória de cotas, que é uma indenização pouca e tardia a um povo que foi arrancado de sua terra e trazido para cá como escravo; é escola proibida de combater o racismo que, no Brasil, além de crime e de prática inaceitável, é burrice, pois poucos de nós não têm sangue negro.
É escola pública proibida de ensinar e aprender que feminismo não é o machismo às avessas, mas, sim, a luta de mulheres por igualdade de direitos, respeitadas as diferenças. O Brasil tem uma média de doze mulheres assassinadas por dia, sendo o País o quinto lugar do mundo mais perigoso para as mulheres e crianças viverem. É papel da escola mostrar que assédio, piadinhas, estupro, agressões físicas ou morais e assassinatos são violências inaceitáveis e que isso não é engraçado.
Não por acaso, a mesma gente que quer proibir essa discussão não apenas na escola, mas na sociedade, quer ‘amenizar’ as punições previstas na pioneira Lei Maria da Penha. É escola pública proibida de ensinar o respeito à diversidade cultural e à orientação sexual.
Escola contra a soberania do povo e do país
É escola pública que se omitirá de dizer que todos os países da América Latina têm a mesma história de genocídio e de exploração e que, por isso mesmo, devem se unir para combater os exploradores que, historicamente, não desistem de nos escravizar.
É escola que não discutirá a soberania a quem têm direitos todos os países e, menos, ainda, mostrará que a solidariedade é o amor entre os povos.
A entrega da imensa riqueza representada pelo nosso pré-sal aos norte-americanos, cujos recursos, inicialmente, eram destinados, 75% para a educação e 25% para a saúde; a perseguição do mundo e da imprensa ocidental à Venezuela, porque o governo se nega a entregar seu petróleo são, ainda hoje, exemplos claríssimos de ataque à soberania de países latino-americanos.
Escola com antolhos
É escola pública que se calará diante do fato de que o povo brasileiro sempre teve negado um direito humano que é o direito à informação correta, porque a imprensa é propriedade de sete famílias ricas, que só noticiam aquilo que é de seu interesse e que, por isso mesmo, mentem, omitem, distorcem, destroem vida e reputação de quem se insurge contra ela e contra seus objetivos. Um imprensa que esconde o Brasil dos brasileiros.
É escola pública ensinando religião, quando ensinar religião é uma decisão apenas e tão somente da família! É a escola impondo uma religião ou uma vertente religiosa em detrimento das demais. Religião é questão de foro íntimo! Cada um que tenha a sua, respeitando quem tem outra diferente e quem não a tem, inclusive.
Querem destruir o Estado laico, o único que permite liberdade de crença, de culto, de religião. Essa gente não quer escolas para construir cidadãos, mas fanáticos religiosos. Ninguém precisa de talibãs, versão tupiniquim.
Escola pra formar gente tosca e subalterna
Não bastasse o estado de quase barbárie em já que vivemos hoje – os torcedores brasileiros deram ao mundo, durante a Copa na Rússia, o testemunho dessa calamidade – a escola pública “sem partido” proposta, em resumo, é um espaço em que valores humanos e científicos e o exercício da crítica serão deixados de lado para dar lugar a um campo de adestramento de mão de obra barata e servil. Um escola proibida de dizer aos seres humanos que eles têm direitos.
É, enfim e resumindo, uma proposta de escola para solidificar e perenizar a barbárie de todos os preconceitos, do fanatismo religioso, da ignorância, da falta de cultura, do machismo, do racismo, da falta de civilidade, da falta de solidariedade em geral e da violência contra trabalhadores e trabalhadoras em educação.
E as escolas particulares frequentadas pelos ricos tratarão de formar os/as que continuarão mandando no Brasil, com prejuízo para a maioria, como acontece há mais de 500 anos.
Uma escola antieducação
Está claríssimo: a proposta de “Escola sem partido”’, na verdade, não é escola; é campo de adestramento. Dentre alunos e alunas adestrados para o subemprego, não sairão cientistas importantes, professoras/es, médicos/as, engenheiros/as, escritoras/as, artistas, compositoras; ninguém que contribua com a elevação do patamar de civilidade para tornar a vida mais saudável.
A professoras e professores das escolas públicas, o papel de capitão do mato ou de adestradores, o que lhes mataria a alma de educadores que, na lida, também se educam e também aprendem; e aos alunos e alunas das escolas públicas, a mediocridade!
A ideia é matar, no nascedouro, o Brasil soberano, feliz e igual que nasceria todos os dias na escola pública, com trabalhadoras e trabalhadores em educação bem remunerados, cientificamente competentes; com crianças e adolescentes participativos, respeitosos e respeitados, no exercício de uma educação libertadora.
*Maria Lúcia de Moura Iwanow, professora aposentada, é cofundadora da CNTE e ex-secretária
de imprensa da entidade