Enameb: Mais um golpe na Educação

Como educadores e educadoras, sabemos o papel que uma boa ferramenta de avaliação pode cumprir nos processos educativos. Ela deve permitir que se identifiquem falhas e êxitos, para que a instituição ou a pessoa avaliada possam evoluir no cumprimento de seus objetivos. No caso da escola, é preciso considerar fundamentalmente seu lugar como espaço de formação da cidadania e significativa contribuição para o exercício da democracia, para além dos processos de ensino-aprendizagem de conteúdos.
Na contramão dessa concepção, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 6114/2009, de autoria do então senador Wilson Matos (PSDB-PR), agora sob a forma do substitutivo apresentado pela deputada Glorinha Seabra Rezende (DEM-TO). Trata-se de instituir um Exame Nacional de Avaliação do Magistério da Educação Básica (Enameb), a fim de “avaliar os conhecimentos e habilidades dos docentes de educação básica”, através de uma prova aplicada bianualmente.
Tal PL deve ser compreendido no contexto de ataques que a Educação vem sofrendo desde a consolidação do golpe. Em meio à emenda constitucional 95, que estabeleceu o fim do investimento em educação por 20 anos; à contrarreforma do ensino médio; à entrega do pré-sal; à lei da mordaça; e ao desmonte do PNE; o PL 6114 apresenta o mesmo problema de origem. Não há como “corrigi-lo”: o projeto precisa ser integralmente rejeitado.
Problemas graves
Em primeiro lugar, porque ele não propõe a avaliação da escola, do sistema, muito menos das condições estruturais de trabalho, mas sim, somente do (a) professor (a). Trata-se de profundo problema de concepção. Uma avaliação que vise a melhorar o sistema e seus resultados deveria buscar um bom diagnóstico, que permitisse atuar para a melhora do sistema e das redes. E quem, primordialmente, deve atuar para a melhora das redes públicas? Ah, sim: o Estado e os governos.
O projeto original apontava que a participação no exame seria “voluntária e gratuita”. O substitutivo retirou a palavra gratuita, ou seja, fica aberta a possibilidade de as professoras e professores pagarem para fazer a prova. Quanto à palavra voluntária, o próprio PL se contradiz adiante, quando indica que o exame poderá servir como parâmetro para a progressão funcional do servidor (a).
Esse é um aspecto gravíssimo. No contexto em que a ameaça à estabilidade do servidor público se materializa no PLS 116/2017, a progressão de professores e professoras na carreira ficaria subordinada a um exame, o que desfere um ataque mortal à ideia de carreira do magistério. Os governos poderiam, por exemplo, abrir mão de planos de carreira e políticas de reajuste, e apoiar-se meramente na distribuição de bônus. É outra vez a noção de meritocracia se impondo ao serviço público e à Educação. Uma lógica completamente deturpada, que se contrapõe ao fortalecimento da Educação pública. O resultado final sugere apenas o estabelecimento de uma lógica de premiação/punição dos professores (as), sobrepondo-se à própria noção de carreira.
Importante destacar que se submeteriam ao exame, além de docentes no exercício efetivo do Magistério, também aqueles “habilitados para a docência […] e candidatos ao ingresso na carreira do magistério”. Quanto a isso, no artigo 7º, o substitutivo apresentado pela deputada Glorinha afirma que os resultados do exame podem ser utilizados, inclusive, para subsidiar exames de seleção. Um golpe certeiro contra os concursos públicos e uma porta aberta para a retomada da ideia de conselho profissional. Nada menos que a ânsia privatista que tem assolado nosso país.
Vejamos: a carreira docente se apoia em alguns princípios importantes, e todos eles são atropelados ou negligenciados pelo PL 6114.
Princípios da carreira
A formação inicial é a licenciatura – para ser professor ou professora, é preciso ter essa formação superior, sem depender de qualquer exame de ordem ou conselho profissional. A formação continuada reside nos cursos de aperfeiçoamento, pós-graduação, especialização e outros, que devem estar previstos nos planos de carreira, para que o Estado assegure seu oferecimento e as condições para que os profissionais os acessem. A valorização está na construção de jornadas de trabalho dignas, piso salarial, progressão na carreira. As condições de trabalho são requisito mínimo para que um bom trabalho seja executado. A gestão democrática como princípio básico, capaz de garantir e sustentar os quatro elementos anteriores.
Nenhum desses princípios é sequer levado em conta no PL. O artigo 5º fala em levantamento do perfil dos avaliados e as condições de trabalho, “com o fim de melhor compreender seus resultados”. Deve-se destacar que um levantamento não fornece dados suficientes para conhecer as condições de trabalho dos professores e professoras; e mesmo que o fizesse, o Enameb só se utilizaria dele como elemento que influencia nos resultados do exame, não do sistema. É, no mínimo, altamente equivocado. E no máximo, perverso mesmo.
Ademais, o que dizer do conteúdo do exame? O artigo 3º afirma que ele também pretenderá aferir a compreensão do professor acerca de “temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento”. Em tempos de Lei da Mordaça, o que significa isso? Quem serão os (as) avaliadores (as)? Sobre quais diretrizes os temas serão apresentados? O fato de essas respostas estarem omitidas no Projeto de Lei abre flanco para uma dinâmica ainda mais centralizada do processo escolar, na contramão da Gestão Democrática. Como resultado desse conjunto de opções, é perfeitamente possível que se apontem “soluções fáceis” como terceirização, OS (Organizações Sociais) ou militarização.
Enquanto isso, as questões centrais permanecem escamoteadas. O que dizer do fato, atestado no Censo Escolar 2015, de que somente 4,5% das escolas brasileiras oferecem infraestrutura adequada para o desenvolvimento do trabalho dos professores? Por infraestrutura adequada, leia-se acesso a energia elétrica; abastecimento de água tratada; esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos; espaços para a prática esportiva e para acesso a bens culturais e artísticos; equipamentos e laboratórios de ciências; acessibilidade às pessoas com deficiência. Ou seja: o mais básico do básico. Somente 4,5% das escolas brasileiras cumprem o básico do básico, segundo o Censo Escolas 2015.
Não podemos conceber o espaço e o funcionamento de uma escola a partir de critérios empresariais. Essa escolha produz um profundo abismo entre a natureza social do trabalho desenvolvido nas escolas e os resultados que a concepção bancária (como diria Paulo Freire) pretende alcançar. A avaliação da qualidade da educação deve ser um processo coletivo, realizado por órgãos democráticos e colegiados. Deve considerar variáveis que vão além dos dados quantitativos.
Enameb é antiavaliação
E onde estão as iniciativas para avaliar o sistema escolar como um todo, com seus devidos recortes regionais? Para nós, avaliação institucional é uma ferramenta importante para se alcançarem objetivos, e ela deve ser construída de forma ampla e participativa.
Onde está a disposição para de fato olhar para a Educação básica pública a fim de fortalecê-la? Será que cada ente da federação tem cumprido seu papel? Qual a realidade das escolas?
Como toda decisão política, uma avaliação não tem como ser neutra: sua metodologia, suas referências e a utilização dos seus resultados estão a serviço de um projeto. O projeto refletido no PL 6114 é nítido: desresponsabilização do Estado pela Educação e desconstrução da carreira do Magistério.
A quem serve uma “avaliação” com esse perfil? O que vemos, mais uma vez, é a perseguição do Magistério. Busca-se atribuir ao corpo docente qualquer insatisfação que possa haver com as redes públicas de ensino. Ora, e qual lugar o Estado e os governos devem ocupar nisso? O de árbitro que observa de fora, ou o de responsável pela garantia de uma Educação pública e de qualidade?
A avaliação de desempenho deve ser em um momento onde as (os) trabalhadoras (es) da educação opinem sobre os sistemas educacionais, de maneira a melhorar o processo de ensino-aprendizagem em todas suas dimensões, e oferecendo parâmetros para políticas públicas que reafirmam o compromisso com a qualidade da educação e com a escola pública e democrática. Portanto, não há outra opinião possível para os defensores e defensoras da Educação que não esta: contra o PL 6114.
*Enameb: Mais um golpe na educação é um artigo de autoria de Gabriel Magno, professor da rede pública de ensino e diretor do Sinpro-DF.