Deputado distrital apresenta PL que revoga o Estatuto da Família do Distrito Federal

O deputado distrital Ricardo Vale (PT) apresentou o Projeto de Lei (PL) nº 2.059/2018 para revogar o Estatuto da Família. De sua própria autoria, o PL foi apresentado no dia 25 de junho, data da publicação da Lei nº 6.160/2018, que instituiu esse estatuto no Distrito Federal. Contudo, em razão do recesso legislativo, o PL da revogação só será votado em agosto.

Vale critica o deputado distrital Rodrigo Delmasso (PRB) e afirma que o PL que deu origem ao Estatuto da Família não poderia jamais ter sido apresentado para votação em bloco, uma vez esse método impede a discussão de tema tão polêmico. A diretoria colegiada do Sinpro-DF, por sua vez, lamenta a atitude da CLDF e considera desonesta a camuflagem do estatuto nesse formato de votação.

“É um documento anacrônico e inconstitucional. Esse estatuto é mais uma lei fundamentalista e de índole fascista que põe o Brasil entre os países mais atrasados do mundo. É preocupante também em relação ao acesso das outras composições familiares não contempladas por essa lei às políticas públicas de Estado. É bom lembrar também que, a despeito de identidade de gênero e orientação sexual, todo mundo paga impostos e tem direitos”, observa Rosilene Corrêa, coordenadora de Finanças do Sinpro-DF.

Jucimeire Barbosa, diretora da Secretaria de Raça e Sexualidade do sindicato, considera a atitude dos distritais desleal e inconsequente para a sociedade. “Vota-se em favor desse estatuto, sem levar em conta princípios básicos da dignidade humana que asseguram o direito ao lar e à família, independentemente de como se dá a sua formação: se homoafetiva ou heteroafetiva, pois que, o compromisso e o cuidado têm de se materializar em todas as instâncias”.

Vilmara Pereira do Carmo, coordenadora da Secretaria para Assuntos e Políticas para Mulheres Educadoras, diz que a palavra que traduz o cerne desse projeto é “exclusão”. “Como o Estado pode assumir a tarefa de conceituar família que não seja pelos laços de amor e compromisso? Essa relação não pode ser limitada por relações heteroafetivas. Temos, no DF, centenas de famílias homoafetivas ou famílias constituídas de avós e seus netos e netas; enteados e enteadas com madrastas e assim por diante. Nós precisamos criar a sociedade dos afetos urgentemente”.

BRASIL JÁ RECONHECE RELAÇÕES HOMOAFETIVAS
O deputado Ricardo Vale encontrou na Constituição Federal sua maior justificativa para apresentar um PL de revogação, uma vez que o estatuto é inconstitucional. Em nota à imprensa, ele explica que, “em primeiro lugar, é necessário distinguir o significado de família para as religiões e para a Constituição: as religiões cristãs, especialmente a Católica, minha religião, defende uma família composta, exclusivamente, por homem e mulher e seus descendentes, conforme estabelecido na Lei 6.160/2018 (Estatuto da Família)”, diz.

Porém, “em segundo lugar, a Constituição amplia a concepção de família, uma vez que existem vários arranjos familiares, tais como: netos ou sobrinhos criados por avós, tios ou parentes; mães que, sozinhas, criam seus filhos; casais homoafetivos que adotam crianças, dentre outros e, enquanto agente público e defensor dos direitos humanos e sociais, não posso admitir que a Constituição e a Lei Orgânica do Distrito Federal, que jurei cumpri-las no ato de posse, sejam ofendidas”.

Ele informa que o Estado brasileiro reconhece como família a relação parental e/ou afetiva entre entes diferentes, não se restringindo apenas à relação entre homem (pai) e mulher (mãe). E ressalta que, além de incitar a violência social ao legalizar a discriminação, o “Estatuto da Família” restringe o acesso às políticas públicas a somente um tipo específico de família, o modelo cristão e não o constitucional. “Isso é discriminatório e excludente. Nesse projeto, por exemplo, uma avó que detenha a guarda dos netos não se enquadra no termo “família”. Isto é absurdo. Não podemos admitir”, protesta.

O distrital diz que apresentou o PL da revogação para que nenhuma família seja excluída dos direitos sociais e humanos assegurados pela Constituição. “Defendi e sempre defenderei a liberdade de crenças e combati a intolerância religiosa porque acredito que uma sociedade justa e fraterna respeita as diferenças”, declara.

PT-DF INGRESSA COM ADIN CONTRA A LEI Nº 6.160/2018
A reação ao Estatuto da Família não se encerra aí. O Partido dos Trabalhadores no Distrito Federal (PT-DF) ingressou com uma Ação de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda em junho, porque a proposição é inconstitucional. “Muito mais do que à Lei Orgânica do Distrito Federal, ele fere a Constituição Federal”, contesta Érika Kokay, deputada federal e presidente do PT-DF.

Ela explica que é inconstitucional, em primeiro lugar, porque a matéria pertence ao direito civil e qualquer modificação só pode ser realizada pelo Congresso Nacional porque é prerrogativa do Parlamento Federal. Segundo, porque o Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou sobre o conceito de família ao possibilitar a união homoafetiva, o que permitiu uma construção de família que não está abarcada pelo estatuto. Terceiro, porque a Constituição é clara ao dizer que é preciso coibir toda forma de discriminação.

Kokay lembra que o estatuto desrespeita a Constituição em todos os sentidos, sobretudo, pelo fato de ela ter sido construída com base no princípio fundante e tecida com as linhas da dignidade humana, “e, para o exercício da dignidade humana, é preciso ter a liberdade de construção familiar”, ressalta.  A deputada informa que o voto do relator Ayres Britto, quando o STF instituiu o novo conceito de família e permitiu a união homoafetiva, foi muito claro sobre o princípio do afeto, do direito.  Na época, o voto de Britto buscou solidificar o direito humano e consolidar o princípio democrático de que o país não pode ter qualquer tipo de proposição ou de legislação que signifique excluir ou outro.

“O ministro Ayres Britto fala que o direito das pessoas homoafetivas de constituírem família é um direito que não retira direito de ninguém. Assim, aqueles que lutam contra relações homoafetivas e outras relações diferentes da relação restrita que está no estatuto de Delmasso transformam os discursos LGBTfóbicos em bala e faz do Brasil o país que mais mata a população LGBT no mundo”, afirma a deputada federal.

ESTATUTO DA FAMÍLIA E ESCOLA SEM PARTIDO QUEREM CALAR AS PESSOAS
Érika Kokay alerta ainda para o fato de que o Estatuto da Família interfere na educação porque ele tem o mesmo DNA do Programa Escola sem Partido. Este último cria uma concepção de saber único, não dialógico, que não leva em consideração a existência de diversos saberes que estabelecem um diálogo entre si que, daí, constroem-se outros saberes. “Ou seja, os parlamentares fundamentalistas e privatistas rompem com a lógica dialética e tentam colocar que a escola é apenas um instrumento de transmissão de conteúdos e de forma hierarquizada”.

Ao fazer um paralelo entre o Estatuto da Família e o Escola sem Partido, Kokay mostra que: “No Escola sem Partido, o estudante não tem acesso ao saber e é transformado em receptáculo vazio que recebe o conhecimento imposto de forma hierarquizada, uma educação conteudista, sem ser contextualizada, sem se discutir os fenômenos humanos, as relações, a vida: é uma mordaça”.

Ela explica que o Escola sem Partido foi elaborado na mesma lógica do Estatuto da Família porque atente aos anseios dos que querem impor a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual na sociedade e nas escolas. Essas pessoas pretendem negar a diversidade, negar à educação sua principal peculiaridade que é a de ser o instrumento de perceber o outro e de se fazer com o outro. “Quando você nega a alteridade, o outro, porque você nega a diversidade, você impede as pessoas de desenvolverem a capacidade de consciência crítica e elimina, esteriliza, a capacidade transformadora da sociedade”, afirma a deputada federal.

Para Kokay, o Escola sem Partido e o Estatuto da Família são propostas semelhantes porque as duas querem calar as escolas e as pessoas e adverte que, as pessoas que querem calar as escolas hoje, o querem de forma diferente do que queria a ditadura militar. Ela explica que, na ditadura militar, professores que falavam sobre a fome no Brasil, uma vez que a fome era invisibilizada pela sua naturalização, corriam o risco de serem presas e torturadas.

“Naquela época, havia agentes do Estado, geralmente, infiltrados, que cumpriam a função de detectar quem ousava a falar dos fenômenos humanos, da realidade social que o Brasil vivenciava. O que o Escola sem Partido quer impor é que essa função, que era feita por agentes do Estado repressor, seja internalizada e exercida pelo estudante! As salas de aula terão um cartaz que diz o que é preciso ser coibido e o que insta os estudantes a denunciar o próprio professor. Ou seja, o Escola sem Partido destrói o vínculo de uma política pública que é diálogo entre pessoas que a educação carrega com generosidade e fatura”, finaliza.