Defender o Currículo em Movimento – Resistir à BNCC

¹ Edileuza Fernandes Silva

No período de 2011 a 2014, professores, gestores, estudantes e demais profissionais da educação básica da rede pública de ensino do Distrito Federal se engajaram na construção coletiva de uma proposta curricular que atendesse aos anseios dos sujeitos que, no dia a dia da escola e da sala de aula, dão vida ao currículo. O intuito foi construir um currículo como “documento de identidade” (SILVA, 2003)1 da escola. Para isso foi proposta uma nova estruturação teórico-política desse instrumento entendido como campo político-pedagógico construído nas relações entre os sujeitos, destes com os conhecimentos e com as realidades múltiplas do DF.
Em fevereiro de 2014, o Currículo em Movimento foi entregue oficialmente à comunidade escolar com um convite a todos(as) os(as) envolvidos(as) em sua elaboração para se discutir a função social da escola; tentar romper a concepção conservadora de ciência, currículo e conhecimento; questionar práticas pedagógicas conservadoras; e compreender que educação é construção coletiva. Educação, é, portanto, direito inalienável de todos(as) e cada geração impulsiona suas mudanças, seus novos movimentos.
A elaboração coletiva de um currículo gera a expectativa de que, a partir dele, seja possível instituir processos educativos voltados à formação integral emancipatória dos sujeitos. Nela o ser é visto não só como portador de conhecimento para o mercado e o capital, mas como alguém consciente de sua cidadania e da responsabilidade com sua vida e a do outro. Com o golpe político, jurídico e midiático instituído em 2016, os reformadores que passaram a ocupar o Ministério da Educação, a partir de uma coligação liberal-conservadora representada pelo DEM-PSDB e apoiados pelo Movimento pela Base e financiados pela Fundação Lemann, entregaram, recentemente, ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, para a apreciação do Conselho Nacional de Educação (CNE). Importante ressaltar que o CNE passou por mudanças de seus representantes, com o claro objetivo de criar as condições favoráveis à aprovação das reformas educacionais. A proposta é uma regulamentação de modificações expressas na Reforma do Ensino Médio, Lei nº 13.415/17. Diante dessa realidade, surgem algumas perguntas que necessitam de respostas à comunidade educacional: Por que a ênfase em uma Base Curricular Comum para o país? Quais os interesses que subjazem essa busca pela homogeneização e pelo controle sobre o currículo escolar? Que influência uma Base Curricular pode exercer sobre o trabalho docente e a melhoria da qualidade da educação?
O currículo escolar como campo de disputa e poder, articulado às políticas de avaliações externas, cria o cenário perfeito para o controle do conhecimento definido como necessário à formação dos estudantes e para regulação do trabalho do professor. Tudo isso ocorre na contramão das discussões e das propostas feitas pelas instituições representativas dos educadores e pelos professores, como é o caso do DF, com o Currículo em Movimento da Educação Básica da Secretaria de Educação do Distrito Federal (2014). Currículo este elaborado com a participação da comunidade escolar.
Vocês devem estar perguntando-se: o que há de problema em se ter uma Base Nacional Comum Curricular? O problema não reside na BNCC em si; o que está em questão é a política educacional do governo Michel Temer, uma política pautada pela cultura gerencial, que tem orientado a elaboração da Base do Ensino Médio, assim como orientou a da Educação Infantil e a do Ensino Fundamental e tem o propósito de estruturar uma regulação financista com conexões mercadológicas. Para isso busca-se a padronização e a homogeneização do conhecimento, atreladas a avaliações externas como mecanismos para aferir, controlar e regular o ensino, tendo como referência as demandas impostas pelo Estado capitalista que, ao mesmo tempo em que reduz suas
Na BNCC da Educação Infantil, propõe-se a escolarização, com a definição de objetivos em três faixas de idade. Na do Ensino Fundamental, a redução da idade limite para alfabetização, de 8 para 7 anos, desconsidera que a ampliação do Ensino Fundamental de oito para nove anos, incorporou crianças de 6 anos, que antes cursavam a Educação Infantil, demandando dos sistemas e das escolas pensar a relação tempo-espaço-currículo para atender às especificidades dessas crianças, que não deixaram de tê-las pelo simples fato de estarem no Ensino Fundamental.
No Ensino Médio, por sua vez, há um estreitamento curricular, no intuito de vincular a BNCC às avaliações em larga escala. Para isso foi construída uma estrutura codificada na escrita do documento, que favorece a quantificação e a padronização dos testes que serão aplicados para medir a “qualidade”. Além de privilegiar apenas duas disciplinas, Português e Matemática, sendo as outras pulverizadas em suas áreas. A limitação da carga horária para a BNCC, e o prosseguimento em itinerários formativos diversificados, atingirá todas as disciplinas do Ensino Médio, com exceção de Português e Matemática. Para os estudantes oriundos de comunidades populares, importa que saibam ler e escrever, resolver as quatro operações matemáticas básicas e compreender a lógica formal simples, que significa entender que algo tem uma causa e um efeito. Diante dessa realidade, cabe questionar como uma Base organizada em direitos de aprendizagem e define conhecimentos essenciais expressos em dez competências gerais, que guiam o desenvolvimento escolar das crianças e dos jovens desde a creche até a etapa final da Educação Básica, pode dar conta das singularidades, das particularidades e das diversidades dos milhões de estudantes brasileiros?
Vale ressaltar que a “nova” BNCC para a Educação Básica recupera uma “velha pedagogia”, das competências e habilidades, perspectiva pragmática de formação que foi central na organização dos conteúdos da escola na década de 1990 e revela um projeto de formação vinculado ao imediato, em que os conteúdos visam formar as capacidades e a adaptação dos indivíduos ao mercado de trabalho, incentivando os jovens a competirem e a se adaptarem individualmente aos processos sociais. Destaca-se, ainda, a exclusão de termos como “gênero” e “orientação sexual”, desconsiderando que o PNE (2014-2014) indica a necessidade de que as questões curriculares sejam relacionadas aos debates e às lutas sociais pela diversidade como condição sociocultural.
O slogan adotado pelo governo golpista “se a base da educação é a mesma, as oportunidades também serão” é falacioso. A visão de que basta apresentar uma Base Curricular para resolver as fragilidades da formação dos jovens do Ensino Médio é atribuir à educação a função redentora das desigualdades sociais, como se elas não fossem produzidas pelo tipo de organização social de exploração do homem pelo homem. Historicamente a educação tem servido como espaço favorável para fornecer conhecimentos e pessoal necessários à manutenção do capital e à legitimação da ordem social vigente por meio da criação e da transmissão dos valores e cultura da classe dominante. A reforma do Ensino Médio é, portanto, mais um mecanismo de legitimação dessa ordem.
A reforma empresarial da educação básica tenta responsabilizar a escola e o professor pela não aprendizagem dos estudantes, desconsiderando resultados de estudos, pesquisas realizadas pelas universidades brasileiras e os processos instituintes de construção de currículos nas escolas pelos atores sociais. Ao mesmo tempo, há negligência de investimento na infraestrutura das escolas, na redução de número de estudantes nas salas de aula, na ausência de carreiras e salários dignos para os professores. O que está em trânsito com essas reformas educacionais é um projeto de desmonte da educação básica pública no nosso país, para atender a interesses de grupos hegemônicos em defesa de uma educação como mercadoria. A flexibilização curricular para a adequação à formação no Ensino Médio às novas demandas oriundas dos processos de reestruturação produtiva do capital, enfatiza aspectos técnicos e resultados a serem aferidos pelos exames externos. Como desdobramentos dessa política, outras se avizinham: avaliações de docentes, base nacional para a formação de professores alinhadas às BNCCs da educação básica, residência pedagógica atrelada à BNCC…
Como cidadã, pesquisadora, educadora formada na escola pública, conclamo a todos e todas para, em uníssono, declararmos a resistência política e pedagógica à BNCC e a defesa da nossa autonomia pedagógica para pensar e fazer currículo como atores sociais que somos. Para isso resistir à BNCC é preciso, defender o Currículo em Movimento da Educação Básica, como processo e produto de construção coletiva dos estudantes e profissionais da educação do Distrito Federal, é compromisso!
1 SILVA, T.T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.