Contra Alckmin, estudantes realizam sua própria reorganização escolar em SP

“O Raul Fonseca é escola de luta”. Esse é o recado que pode ser lido a metros de distância na grande faixa que preenche boa parte do muro da tradicional escola estadual, no Jardim da Saúde, na zona sul de São Paulo. Há mais de uma semana o prédio está ocupado por cerca de 100 estudantes que são contra a proposta do governador Geraldo Alckmin (PSDB) de “reorganização” escolar, que pretende fechar 94 instituições de ensino no estado, afetando mais de 311 mil alunos.

Foto: Elaine Campos

No entanto, o que era pra ser uma protesto estudantil tem se transformado também em um processo de aprendizado, que pode levar à lembrança do ensinamento de Paulo Freire, de que é preciso saber “ler o mundo”. “Trata-se de aprender a ler a realidade (conhecê-la) para em seguida poder reescrever essa realidade (transformá-la)”, anunciava Freire.

Segundo o último balanço realizado pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp), até o fim desta terça-feira (24), 148 escolas estavam mobilizadas pelos estudantes que estão, agora, por eles mesmos aproximando a instituição à sua realidade e protagonizado a sua própria reorganização escolar.

No Raul Fonseca, são os próprios alunos que monitoram quem entra e sai. Para quem para na frente do portão na Avenida Inhaiba, número 92, é preciso se identificar à “comissão de segurança” estudantil e, uma vez aprovada a permanência no local, nomes e horário são devidamente anotados em uma prancheta. Todo cuidado tem um motivo: deixar a escola exatamente como estava no primeiro dia da ocupação.

“Está todo mundo organizado desde o início. Não tem briga, não tem bagunça. A gente lava o banheiro, a gente limpa a escola. O diretor ‘deu a louca’ de tirar foto de todos os cantos da escola para que a gente não começasse a sujar, sendo que a gente não vai fazer isso. Se a gente quer ficar na escola a gente não vai vandalizar! No começo, ele tirou foto e não queria sair e alegou que a gente estava mantendo ele em cárcere privado. Isso não tem como! Então, se for assim quando o aluno quer sair da escola e não deixa, ele mantém em cárcere privado também”, explicou a estudante do primeiro ano do ensino médio, R.R., de 15 anos.

Antes não tinha, agora tem

Para Felipe Alencar, estudante de pedagogia que acompanha os alunos desde o primeiro dia da ocupação, realizada na terça-feira passada (17), a mobilização tem ressignificado o lugar. “Estas ocupações estão dando muita vida para as escolas e estão ajudando a mobilizar uma nova camada de jovens. A gente no Raul Fonseca está no terceiro dia de ocupação e está indo para a segunda apresentação de teatro, por exemplo. Coisa que a gente não tem nunca durante o ano”, pontuou o estudante, após as atividades promovidas na escola durante o Dia da Consciência Negra.

Foto: Elaine Campos

Além das ações no feriado, o quadro de atividades exposto na entrada do prédio escolar evidencia a nova rotina dos ocupantes. Organizada pela “comissão de atividades”, a primeira semana contou com saraus, apresentações teatrais, oficinas de stencil, além de debates sobre racismo, aborto e capitalismo.

Na mesma semana, um campeonato de futebol foi promovido. Mas sua realização não não foi apenas para o divertimento dos alunos: ela teve um propósito político. A estudante R.R. conta que o machismo dentro da instituição é recorrente e que, por isso, alguns alunos impediam que garotas participassem das partidas. A saída da direção foi impedir as meninas de jogarem.

“Campeonato quando tem aqui na escola é vôlei para as meninas e futebol para os meninos. Porém, tem muita menina que não sabe jogar vôlei e sabe jogar mais futsal. A gente, muitas vezes, briga por conta disso e ele [diretor] fala que a gente vai jogar somente vôlei. O machismo dele também incomoda muita gente”, relata.

No sábado, quinto dia de ocupação, um campeonato para alunas e alunos foi realizado na escola.

Inspiração

Longe de ser um caso isolado, as experiências no Raul Fonseca, e nas mais de escolas ocupadas, têm inspirado muitas pessoas. “Às vezes a gente se sente meio sozinho na multidão enquanto militante. A gente vê a direita avançando tanto e muitos [sujeitos] periféricos com visões retrógradas que, às vezes, a gente se sente desanimado. Aí, de repente, vem esta juventude fazer este levante, que enche nossos corações esperança”, comenta Ana Fonseca, integrante do Coletivo Perifatividade, grupo cultural que tem acompanhado e realizado atividades com os alunos.

Segundo Dimitri Silveira, professor de geografia, muitos professores também têm visitado a escola e prestando sua solidariedade. “Os professores vêm também de outras escolas para ver como está acontecendo tudo aqui”, disse. Ele informou que, embora nem todos os professores apoiem a ocupação, todos os dias, ao menos um professor acompanha o dia a dia dos alunos desde a terça-feira passada.

Sarau realizado na escola no Dia da Consciência Negra. Foto: Elaine Campos

A alimentacão dos alunos tem contado com a colaboração da Apeoesp, de pais e doações solidárias, como a realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que doou leite, suco e achocolatados.

Alunos, professores e pais pela educação

 Além dos professores e movimentos populares, muitos pais tem apoiado a mobilização dos secundaristas. Com dois filhos matriculados no Raul Fonseca – um no terceiro ano e outro no primeiro – Márcia Regina Clemente, condutora de transporte escolar, tem acompanhado diariamente a rotina da escola e lamentou a falta de diálogo do governo com os pais.

“Eu acho que não dá pra ficar engolindo todas as decisões do governo, porque a gente coloca os governantes lá para que nos representem. Uma vez que eles tomam uma decisão sem consultar a comunidade escolar, que são os pais e os professores, eu já era contra”, disse.

Márcia conta que a direção da escola nunca a procurou para informar sobre o fechamento da instituição e que ficou sabendo que o filho mais novo estava matriculado em outra escola três dias antes da ocupação dos estudantes. “Eu fiz a rematrícula aqui na escola [Raul Fonseca] na data que eles pediram para eu comparecer e assinei a ficha aqui na escola – a ficha que eu assino há quatro anos porque ele já estuda aqui desde a 5ª série – e quando eu fui puxar no registro dele, no site, ele já estava matriculado em outra escola”, contou.

A mudança arbitrária mudaria a rotina da família de uma hora para outra. Mesmo que a distância entre a Raul Fonseca e a escola na qual o filho mais novo seria transferido não fosse tão grande, Márcia observa que para chegar à nova escola o filho teria que passar por duas travessias perigosas na região, a avenida Vergueiro e Tancredo Neves. Em ambas não há ônibus para chegar à escola.

Resistência

“De vez em quando passam uns carros aqui na escola bem devagar com vidro todo preto, não dá pra ver quem é. Estão rondando aqui a ocupação o que levanta preocupação aqui para os alunos”, observa Silveira, professor de geografia. Ele alerta para as estratégias de boicote contra a ocupação que acontecem, geralmente, à noite, quando cerca de 30 estudantes que dormem na escola estão presentes.

Na sexta-feira (20), os estudantes foram surpreendidos com garrafas de coquetel molotov que foram jogadas acessas para dentro do gramado da escola por volta das 23 horas. Os alunos que estavam de vigia no momento não conseguiram identificar qual origem dos objetos, mas assim que viram um “clarão” se organizaram para apagar o fogo que atingiu o estacionamento.

“A gente correu e pegou água para apagar o fogo antes que alastrasse. Depois deste evento, a gente fez uma ronda na escola e reforçou colocando mais pessoas para a segurança da escola e dos alunos aqui dentro”, afirmou Guilherme Cordovil, de 18 anos, aluno desde a 5ª séria na unidade escolar.

Dimitri Silveira avalia que, apesar desses casos, a comissão de segurança formada pelos alunos vai resistir. “A gente está preparado!”, disse. Segundo o professor, a última proposta do governador, anunciada no dia 19, de suspender por dez dias o processo de reorganização, foi rechaçada pelos estudantes e foi uma forma de alimentar a resistência.

“O que o governo quer com isso? Tirar os alunos da ocupação e depois implementar o programa que eles querem. O que estamos discutindo agora? Como fortalecer esta luta das ocupações. Então esta luta vai continuar!”, disse.

(Do Brasil de Fato)