Comunidade internacional vê incrédula cenário brasileiro

Em meados de 2003, início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil passou a ganhar atenção especial da comunidade internacional. Os motivos não foram poucos. Além do fortalecimento da economia, que passaria a ser a 6ª maior do mundo, desbancando a Grã-Bretanha, a nota do país no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU teve uma melhora significativa, o coeficiente Gini do Brasil (mede os índices de desigualdade), nos cálculos do Banco Mundial, passou de 58,6, em 2002, para 52,9, em 2013, além do progresso em áreas importantes, como exemplo da Educação.
Mesmo diante de todo este avanço, fator que colocou o Brasil em lugar de destaque no cenário internacional, o golpe contra a democracia (2013) provocou uma ruptura em todo este processo de crescimento social, econômico e humano. Segundo o professor da rede pública do Distrito Federal e membro do Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Antônio Lisboa, a repercussão que o país teve a partir do impeachment de Dilma Rousseff foi extremamente negativa.
Em entrevista concedida ao Jornal Quadro Negro, Lisboa diz que vários líderes, que acompanharam todo crescimento do Brasil nos treze anos de governo do PT, veem atônitos e com muita desconfiança as mudanças no país, principalmente na retirada de direitos trabalhistas, luta esta que sempre fez parte das bases do governo de Lula e Dilma.
 
QN: Como o Brasil está sendo visto pela comunidade internacional neste período pós-impeachment?
Antônio Lisboa: Precisamos resgatar um pouco isto. Nos primeiros 15 anos deste século XXI, o Brasil passou a ser uma referência no mundo de país com avanço nos processos democráticos; na inclusão das populações mais pobres; no combate efetivo à pobreza; e em políticas sociais que incluíam não só as pessoas mais pobres, mas também as minorias. Especialmente nos anos 2008 e 2010, quando o mundo caminhava para a exclusão, para o aumento das desigualdades e para o aumento da pobreza, o Brasil caminhava no sentido contrário. Lá fora, éramos uma referência de políticas de combate ao neoliberalismo e de combate às desigualdades. Hoje, a situação se inverteu. A imagem do Brasil, que tinha melhorado tanto nestes quinze anos durante o governo de Lula e Dilma, hoje é a pior possível.
 
QN: Quais as razões, na visão deles, para esta imagem ter ficado tão arranhada, negativa?
Antônio Lisboa: As pessoas ficam chocadas pelo fato de como um país que andava no caminho das melhorias para o seu povo, em um avanço democrático consegue, a partir de um golpe de estado, jogar todas as políticas sociais fora e ainda retroceder do ponto de vista político, dos direitos humanos e dos direitos democráticos de uma forma tão rápida. O que posso dizer é que talvez a imagem do país lá fora nunca tenha estado tão ruim. Mas é importante salientar que a imagem dos golpistas está muito pior. O mundo conhece e percebe todas as atrocidades que eles estão fazendo.
 
QN: É bom salientar que esta imagem ruim, de desconfiança por parte da comunidade internacional, não era assim.
Antônio Lisboa: Evidente que o Brasil em outras épocas tinha a imagem de um país muito desigual, mas agora o que está muito evidente é o aumento das desigualdades, o retrocesso político, dos direitos humanos, democráticos, trabalhistas e demais direitos que conseguimos alcançar nestes últimos anos, além da forma evidenciada de que a elite brasileira talvez seja a pior elite do mundo.
 
QN: Mas pior em que sentido?
Antônio Lisboa: A mais preguiçosa, racista, xenófoba, mesquinha. Isto tem chocado as populações lá fora.
 
QN: E este choque é analisado de que forma pela comunidade internacional?
Antônio Lisboa: Quando eles veem a forma como uma presidenta, que apesar dos problemas de gestão ou dos problemas em seu governo, reconhecidamente honesta foi tirada do poder por um grupo de corruptos, choca todo mundo. Como um grupo de pessoas reconhecidamente corrupto derruba uma presidenta honesta com o discurso de combate à corrupção? Isto choca as pessoas.
 
QN: Mas não é apenas isto que tem chocado, é?
Antônio Lisboa: Não. Outro ponto que choca e tem causado receio é a forma como se persegue o presidente Lula. Hoje está absolutamente claro que o golpe aconteceu para tirar a Dilma do governo e continua avançando para impedir que o povo consiga ter liberdade de escolha. Lá fora, a prisão do Lula é uma coisa chocante e vemos isto nos grandes jornais dos Estados Unidos e da Europa.
 
QN: Você consegue vislumbrar uma forma de se corrigir toda esta injustiça, corrigir o curso deste golpe?
Antônio Lisboa: Com muita luta. Nós não temos outra saída. É preciso que se entenda que o golpe brasileiro tem interesses que vão muito além daqueles que vemos. Primeiro tem interesses estratégicos e os EUA estão por trás disto. O Brasil, nos primeiros anos do século XXI, além de ser uma referência de políticas de inclusão social, de combate à pobreza, de avanços democráticos e dos diretos humanos, era uma referência de uma nova forma de estabelecer a governança global, a partir das relações com países africanos, do sudeste asiático, da América Latina, a partir da intervenção na política estrangeira, nas relações internacionais de forma a construir unidades e diminuir os desequilíbrios mundiais. Isto, evidentemente, não agradou os Estados Unidos.
 
QN: Este foi um dos estopins para o início do golpe?
Antônio Lisboa: O primeiro motivo do golpe brasileiro foi uma questão geopolítica. Acabar com os BRICS, com o poder que o Brasil vinha construindo. Nós estávamos nos tornando uma nova forma de governança global muito mais multilateral de respeito aos pobres e às culturas. Outro motivo foi o interesse econômico.
 
QN: E como podemos analisar este interesse econômico?
Antônio Lisboa: A água é um exemplo. No Fórum Mundial da Água, realizado aqui, vimos o que se pretendia e se pretende. Outro ponto é o pré-sal, que foi a maior descoberta de petróleo dos últimos anos, além da própria questão dos bens naturais e dos bens da Amazônia. Tudo isto gerou interesses muito grandes por parte das transnacionais e do capital internacional, de ter poder sobre isto. Tanto é que depois que a Dilma caiu, as mudanças foram acontecendo muito rapidamente, e a primeira foi a mudança da gestão do petróleo e do pré-sal, para entregar para as multinacionais.
 
QN: E neste processo podemos apontar alguma interferência interna?
Antônio Lisboa: A elite brasileira, que é a mais mesquinha, corrupta e preguiçosa do mundo, mas que tem muita força com a mídia, com os latifundiários, com a turma que está no Congresso Nacional. A combinação destas três forças acabou gerando o golpe.
 
QN: E qual é a solução?
Antônio Lisboa: Nós não temos outro caminho. A solução será aumentar nossa organização e lutar para que a gente tenha o nosso país de volta. Hoje o país está sendo entregue a passos largos ao capital internacional e à elite corrupta brasileira, que sempre governou o país e que em nome do combate à corrupção acabou retomando o poder novamente. Precisamos também exigir, dentro e fora do país, a libertação do Lula, porque o mundo todo sabe que o Lula é um preso político e que sua prisão é uma farsa. O objetivo é retira-lo das eleições. Precisamos lutar para que o nosso país seja retomado por seu povo.
 
QN: Hoje existe um temor em relação às eleições. Existe esta razão para temer um novo patamar do golpe impedindo a população de votar?
Antônio Lisboa: Tem duas questões que precisamos analisar. Primeiro, como o capital internacional se move hoje? Até o final do século XX, o grande capital internacional sempre dizia o seguinte: para nós, os capitalistas, é importante que vocês tenham democracias. Hoje os pensadores do capital internacional dizem, e está escrito, que entre as democracias e o capital, fiquemos com o capital. Para estes grandes conglomerados que controlam o mundo hoje, se para manter o seu poder for preciso destruir as democracias, eles vão destruir. Neste sentido, há possibilidade que se eleições vierem a colocar em risco suas estratégias, que se impeçam as eleições. No caso do Brasil piora porque as elites brasileiras também estão envolvidas nisto. Então existe a possibilidade de não termos eleições.
 
QN: E como as elites brasileiras poderiam impedir que o povo escolha seu presidente?
Antônio Lisboa: Já ouvi de algumas pessoas que talvez seja o caso de deixar as eleições de 2018 para 2020. Se a direita brasileira não encontrar um candidato capaz de vencer as eleições e ao mesmo tempo manter o projeto político que está sendo implementado pelos golpistas, não tenho dúvida que tentarão impedir as eleições de 2018.
 
QN: Como a comunidade internacional vê a prisão do Lula?
Antônio Lisboa: Chocadas. Estive em uma reunião com lideranças sindicais de toda Europa, e é uma coisa muito difícil de se explicar. Quando você conta que no dia da prisão do Lula houve uma comemoração em uma casa de prostituição em São Paulo, cujos homenageados principais, que emolduravam o espaço da casa, eram a presidente do STF e do juiz que o prendeu. Como entender a presidente da Suprema Corte e um juiz serem homenageados em um prostíbulo? Mas isto tudo deixa claro que aquilo que a imprensa divulga do Brasil, que a operação Lava-Jato é para combater a corrupção, hoje está claro lá fora que é uma mentira. É uma operação para combater um projeto político de inclusão social e de defesa de direitos trabalhistas. E neste sentido, a comunidade internacional enxerga que o principal candidato, disparado nas pesquisas está preso. É uma fraude e uma grande injustiça.
 
QN: E qual a análise fazem da possibilidade do Lula não participar das eleições?
Antônio Lisboa: O que está absolutamente nítido para as forças políticas, para os movimentos sociais, sindicatos, acadêmicos e juristas fora do país é de que a retirada do Lula e uma eleição sem a participação dele é um golpe. Portanto, que o resultado será uma fraude eleitoral cujo presidente eleito, se vier a acontecer, não terá poder, não terá legitimidade e o país continuará da forma como está hoje.
 
QN: Muitas pessoas que bateram panela e exigiram a retirada de uma presidenta honesta do poder hoje começam a entender e a sentir que a ideia de combate à corrupção era bem diferente. Hoje veem no bolso e no desemprego. O que o trabalhador ainda pode perder com o golpe que ainda está em curso?
Antônio Lisboa: Nós dizíamos que o golpe era contra a classe trabalhadora, contra o povo, contra o país. Veja o que aconteceu depois do golpe: tiraram o pré-sal do patrimônio brasileiro; o desemprego aumentou; fizeram a reforma trabalhista retirando direitos, que é a pior reforma da história. Vemos também a questão da educação, as universidades estão quebradas e correndo risco de fecharem as portas, a tentativa de acabar com o SUS. E você me pergunta o que ainda pode acontecer? Se eles vencerem as eleições (direita), a primeira coisa que vão fazer é a reforma previdenciária, que é a retirada dos recursos da previdência pública para os bancos. E é importante entender que é o sistema financeiro que domina o mundo. Isto sem falar da retirada dos concursos públicos; a queda da estabilidade do serviço público; avanço do fascismo; avanço da violência nas periferias. Este é o país que podemos ter caso não consigamos reverter esta situação.
 
QN: Como você vê o Brasil no futuro?
Antônio Lisboa: O Brasil do futuro é o Brasil que conseguirmos construir. Se conseguirmos retomar o projeto de nação que estava em andamento, temos muitas possibilidades de termos um país grande do ponto de vista do seu povo, importante do ponto de vista da construção da paz mundial, humanista do ponto de vista do trato com sua população, que tenha o desenvolvimento sustentável para garantir que a natureza e todos os bens naturais sejam para as futuras gerações, e que seja um jogador global capaz de garantir a paz e um futuro melhor. Caso não consigamos, corremos o risco de nos transformarmos em uma espécie de México, onde uma elite mesquinha e preguiçosa vai continuar tomando conta das riquezas do país e governando o Estado a seu bel prazer, contra os interesses da maioria do povo.