Caso Bernardo: abandono afetivo desafia escolas e educadores

A morte do menino Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, levantou questões sobre como identificar e agir frente a situações de abandono afetivo identificadas na comunidade e na escola. Segundo relatos de professores, Bernardo era muito querido onde estudava, e não faltavam sinais de que o menino tinha carência da atenção do pai, Leandro Boldrini, e se incomodava com a maneira com que a madrasta, Graciele Ugulini, o tratava. Ambos estão presos sob suspeita de envolvimento no crime.
Assim como Bernardo, muitas outras crianças sofrem de abandono afetivo. Sem chegar a um fim trágico como o do menino gaúcho, esses pequenos têm de lidar com a falta de carinho e proteção diariamente. Os sinais nem sempre são tão evidentes, mas a escola pode ajudar na identificação do problema.
Mudanças de conduta e comportamento bruscos, como a criança que sempre foi receptiva e de repente se isola, por exemplo, ou uma criança que sempre foi calma e se torna agressiva, merecem atenção do professor. “Esses casos precisam ser muito bem investigados, observados e documentados”, aconselha a doutora em psicologia da educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Andréa Patapoff Dal Coleto. “A escola tem obrigação de delatar um caso crítico do pai não ser presente, mas é preciso cuidado. É preciso pegar no pé mesmo da família, insistir em conversar. Se mesmo assim os pais ou responsáveis não responderem, a instituição precisa tomar outra atitude”, diz.
Para a professora, o abandono afetivo se configura não apenas quando a criança é deixada de lado, mas quando ela consegue perceber e sentir o abandono. “O professor tem um papel importante nessa hora. Ele precisa ter uma sensibilidade pedagógica e afetiva para perceber esses sinais. Temos hoje um sistema muito conteudista e, infelizmente, o professor brasileiro, principalmente nas séries do fundamental, tem menos contato com os alunos do que professores polivalentes. Porém, não se justifica a falta de um olhar para o comportamento da criança. Só o conteúdo não basta, temos de trabalhar com o ser humano”, diz.
Segundo a promotora da Infância e Juventude – Regional da Educação de Porto Alegre, Danielle Teixeira, a escola tem a responsabilidade, como toda a sociedade, de agir dentro do possível em uma situação de abandono afetivo de alunos, seja chamando os pais para uma conversa, identificando o que está acontecendo e, se necessário, levando o caso aos órgãos responsáveis, como Conselho Tutelar ou até mesmo o Ministério Público.
A promotora explica que, se o problema refletir no desempenho escolar da criança, tais instituições podem ser chamadas durante o acompanhamento do caso, mas não faz parte do processo judicial. “Dentre as medidas aplicadas, se envolverem a escola, talvez seja necessário a ajuda da mesma. Se os pais não estiverem levando o aluno às aulas ou houver uma alteração de comportamento o juiz pode decidir por esse acompanhamento escolar”, explica. No caso de Bernardo, o diretor do Colégio Ipiranga, Nelson Antônio Gabriel Weber, conta que a escola foi procurada duas vezes pelo Conselho Tutelar e que a instituição contribui com pareceres sobre o aluno.
A promotora da 7ª Promotoria da Infância e Juventude de Porto Alegre, Inglacir Delavedova, explica que a medida de suspensão ou destituição do poder familiar pode ocorrer, mas não é utilizada com frequência, apenas quando há risco de vida constatado à criança. “Cortar o vínculo sem outra medida pode ser muito prejudicial à criança. Geralmente as medidas de tentativa de melhorar a convivência se mostram positivas. O caso de Bernardo foi uma exceção”, afirma.
Na escola, é preciso orientar a criança a encontrar formas de resolver os problemas pelos quais passa. Para que o professor tenha essa sensibilidade, é necessária a capacitação desde a formação inicial, seja em pedagogia ou em licenciaturas. “A formação atual é precária nesse sentido, de comportamento. As teorias são estudadas, mas noto que os alunos entram no curso de pedagogia sem saber como lidar com situações em que um aluno está agressivo ou muito quieto, chorando. A formação continuada pode ser uma maneira de reverter essa situação”, opina Andréa.
Desenhos nem sempre são sinal de maus-tratos
Crianças absorvem muito facilmente o que está ao seu redor enquanto crescem. Mas nem sempre que um aluno desenha algo interpretado como perturbador pelo professor significa que ele esteja passando por aquilo na família. “É preciso cuidado para não psicologizar demais os desenhos. Não é porque uma criança desenha um homem gritando com a mulher que ela passa por isso em casa. Ela pode ter ouvido no vizinho, por exemplo. Ela fica curiosa, porque não entende aquela situação, e acaba representando o sentimento no desenho”, explica Andréa.
O mais indicado é que um profissional apto para analisar tais desenhos seja contatado –  um psicólogo, por exemplo. “Alguns profissionais acabam se tornando neuróticos. Se a criança pintou algo de preto ou vermelho, é porque está sendo agredida. Não é bem assim. Por isso os fatos precisam ser documentados e as atitudes tomadas frente ao comportamento da criança precisam ser bem documentadas”, conclui.
A importância do plano pedagógico
A professora ressalta a importância de uma construção de um Plano Político Pedagógico sólido e afirma que essa organização deve partir da gestão da escola. Os planos geralmente são construídos com base em conversas não só entre os funcionários da escola, mas também entre pais, alunos e a comunidade. Já na formatação do plano, o professor começa a ter uma espécie de formação. “O professor não pode se sentir sozinho, sem apoio da escola como um todo. É preciso uma abertura da gestão da escola para que o educador tire dúvidas de como agir em alguma situação de problemas com alunos. É claro que ele toma decisões sozinho dentro da sala de aula, mas um professor que já não tem preparo paral lidar com situações mais complicadas, como de abandono afetivo, e não tem um canal de comunicação com o gestor da escola vai continuar quieto”.
Dentro de um plano político-pedagógico, a escola pode criar projetos que envolvam as relações interpessoais dos alunos na comunidade e família, reservando momentos para discutir e conversar com os estudantes. Então o aluno vai poder expor seus sentimentos, vai ser ouvido e o professor teria voz para ajudar a resolver o problema. “Será que o professor não ajuda porque não quer ouvir, ou não sabe como lidar ou mesmo não tem espaço para isso? A escola ideal deveria proporcionar esse espaço aos alunos e professores. Infelizmente, elas são a minoria em nosso País”, aponta Andréa.
Relação escola e família
A conversa entre escola e família pode ser determinante para que se evitem tragédias como a do menino Bernardo. O pai não pode ser chamado a participar da escola apenas em festas de comemoração ou em reuniões onde os professores apenas apontam os defeitos dos filhos. A parceria com a escola precisa ser vista como uma extensão da vida da criança. A conversa precisa ser mantida e o que acontece com o aluno na escola deve ser compartilhado com a família. “Quando se matricula um novo aluno, se está também matriculando a família dele, ele vem com uma história que precisa ser reconhecida e conhecida pela escola. Mesmo uma instituição com muitos alunos precisa arranjar mecanismos de envolver a todos”, diz Andréa.
O caso
O assassinato aconteceu no noroeste do Rio Grande do Sul, na cidade de Três Passos. Os principais suspeitos de envolvimento do crime são o pai do menino, Leandro Boldrini, a madrasta, Graciele Boldrini, e uma amiga dela, Edelvania Wirganovicz; os três estão presos. O menino era conhecido na cidade por ser carente e reclamar da falta de atenção do pai e da implicância da madrasta. A mãe do menino morreu em 2010. Bernardo chegou a procurar o Fórum da cidade gaúcha para reclamar dos maus-tratos. Desde novembro de 2013, o Conselho Tutelar acompanhava o caso do menino, investigando se havia abandono afetivo, conversando com o pai, com professores da escola que Bernardo frequentava, o Colégio Ipiranga, e com o próprio menino.
(Do Terra)