Ausência de creches aumenta desigualdade social, afirmam especialistas

Os números do programa federal que financia a construção de creches em todo o País revelam mais do que a lentidão de um processo que prometia se concretizar em quatro anos. Eles apontam a continuidade de um futuro perverso para as crianças que não podem usufruir da educação infantil. Especialistas ouvidos pelo iG garantem: a ausência de creches aumenta a desigualdade social no Brasil.

Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, lembra que os filhos das famílias mais ricas têm acesso à educação infantil, ao contrário das famílias mais pobres. “Quem está na fila são pessoas que não tem condição de pagar por isso”, comenta. Para ele, a avaliação de que essa etapa escolar combate a desigualdade é correta. “Em última instância, a falta de vagas em creches reproduz e acentua essa desigualdade social, levada por gerações.”
Para a coordenadora do Núcleo de Trabalhos Comunitários da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Maria Estela Graciani, a desigualdade promovida e mantida pela ausência da oferta de educação infantil “é a pior face do problema”. “Essa ausência é profundamente prejudicial para o desenvolvimento de habilidades futuras”, afirma. Ela considera os atrasos nas construções das creches um “absurdo” e diz que elas deveriam “ser prioridade absoluta”.
A presidente Dilma Rousseff prometeu priorizar a primeira etapa educacional durante a campanha presidencial e construir 6 mil novas creches. De fato, desde que assumiu o cargo, passou a investir mais recursos que os dirigentes anteriores no setor e construiu mais unidades. Porém, o número de obras prontas – que já seriam insuficientes mesmo que todas estivessem recebendo alunos – mostra que a promessa está longe de ser cumprida.
Das 6 mil unidades prometidas por Dilma ao assumir o cargo em 2011, apenas 417 já podem receber crianças. Outras 1.649 unidades de educação infantil foram concluídas desde então, mas 1.232 delas foram autorizadas ainda na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre 2007 e 2010, ele autorizou 2.285 creches, mas só concluiu 22 antes de sua saída. Os dados foram obtidos pelo iG com exclusividade.
“Essa gestão priorizou a educação infantil mais do que as anteriores, mas não atacou a raiz do problema. O número reduzido de creches construídas e os atrasos começam na manutenção das creches. O governo federal deveria, mas não quer, transferir recursos para ajudar os municípios a manter as creches funcionando”, critica Daniel Cara. Ele ressalta que os valores transferidos hoje pelo governo federal para isso são insuficientes.
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) garante recursos para os municípios que atendem crianças em creches. O valor por aluno (quase R$ 1,5 mil para quem estuda meio período) cresce 50% quando a criança é beneficiária do programa Bolsa Família. Mas esse valor, para um ensino de qualidade, é insuficiente na opinião de especialistas e dirigentes.
Planos e financiamento
A partir de 2016, a oferta de vagas na pré-escola para crianças de 4 e 5 anos será obrigatória. A estimativa da organização Todos pela Educação, que monitora esse atendimento, é de mais de 80% dessas crianças já estejam atendidas. Porém, um contingente de quase 1,4 milhão ainda está fora da escola. Para atendê-los com os padrões de qualidade definidos no Plano Nacional de Educação (ainda em análise no Congresso), seria preciso investir R$ 15 bilhões.
O atendimento das crianças em creches ainda não é obrigatório. A sociedade passou a exigir mais vagas nos estabelecimentos de educação infantil. Muitas vezes, por “necessidade assistencial”, para que as mães trabalhem. Mas inúmeras famílias já compreendem a importância da etapa no desenvolvimento escolar da criança como um todo. No plano decenal de educação, há uma meta de atender 50% das crianças de zero a 3 anos em creches.
Isso exigiria construir 24 mil unidades para atendimento integral, segundo Cara. Custaria só em construção R$ 48 bilhões. “Manter isso tudo exige ainda mais”, destaca ele. “É preciso enfrentar essa questão histórica da ausência federal nas políticas sociais. Os programas não resolvem a política e o financiamento da educação é desequilibrado se considerarmos a capacidade arrecadatória da União e dos municípios”, afirma Cara.
Desde que o Proinfância foi criado, o programa autorizou a construção de 8.348 creches e pré-escolas. Em quase sete anos, apenas 1.671 ficaram prontas. Alejandra Meraz Velasco, gerente da área técnica do Todos Pela Educação, lembra que o plano educacional que terminou em 2010 já previa a mesma meta de atendimento das crianças em creches. “O Brasil tem avançado. Há 20 anos, apenas 7% das crianças estavam matriculadas nessa etapa. Agora são 23%. Mas a gente mantém a mesma meta de atendimento, 14 anos depois”, diz.
Para ela, isso demonstra as dificuldades enfrentadas pelos governos para tirar as propostas da área do papel. Ela lembra que as prefeituras enfrentam problemas de assistência técnica para definir e executar projetos, construir os prédios. Além dos entraves de manter as escolas em funcionamento, pagar professores e oferecer ensino de qualidade. Identificar o tamanho real da própria demanda por vagas é outro complicador, na opinião dela.
Soluções em longo prazo
Eliana Bhering, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e professora do curso de pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que as dificuldades para concretizar a oferta da educação infantil no país vão além. A complexidade do atendimento, a seleção de profissionais preparados para a função e o projeto pedagógico das escolas, por exemplo, não estão claros para todos. “Não há soluções simples, mas estamos avançando”, diz.
Os municípios mantêm listas de pedidos de vagas que demandam anos de espera. O prefeito de Canoas (RS), Jairo Jorge, reconhece que não há como esperar quatro ou cinco anos para terminar uma creche – como ocorreu na primeira fase do Proinfância. “Quanto mais cedo a criança chega à escola, mais oportunidades ela terá”, afirma. Para ele, as prefeituras têm procurado se adequar às exigências do programa federal para cumprir as metas.
“A construção da obra é muito importante, mas a preocupação de todo prefeito é com custeio. Gasta-se muito mais pessoal e manutenção do que com a obra”, garante. A professora do curso de pedagogia da PUC Maria Estela Graciani lamenta os atrasos ainda existentes na oferta de educação infantil. Ela defende que a sociedade continue pressionando por unidades mais rápidas e por investimentos no professor. “O futuro das outras etapas depende disso.”
(Do IG)