"Trabalho ou qualificação?", artigo de Remi Castioni

Tem sido recorrente o uso do termo “apagão” para sinalizar que algo não tem funcionado como se esperaria. Seja na economia, seja no mercado de trabalho, o fato é que, desde a crise de abastecimento de energia de 2001, convivemos recorrentemente com essa afirmação. No caso do mercado de trabalho, faltaria o quê? É grande a expectativa entre nós, pesquisadores, da divulgação da próxima Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2013). Ela poderá confirmar o que já estamos observando nos vários indicadores do mercado de trabalho.
Uma das questões parece consolidada: a taxa de participação, um indicador importante para mensurar a disposição ao trabalho, vem caindo continuamente. Ela ocorre porque um conjunto expressivo de jovens e pessoas de meia-idade passa à condição de inatividade. É possível afirmar que esse fenômeno seja ocasionado, do lado dos jovens, pelo prolongamento dos seus estudos; das mulheres, porque, não tendo onde deixar seus filhos, dada a baixa cobertura das creches (que não atendem mais do que 15% das crianças até 3 anos), são obrigadas a cuidar da prole; e dos de melhor idade, pelo fato de que, amparados pelo aumento médio da renda familiar, preferem não aceitar qualquer trabalho.
Não é por menos que, no Brasil, estamos assistindo a um fenômeno que esteve presente na estruturação do mercado de trabalho urbano e na
conformação do que chamamos de Primeira Revolução Industrial, até 1935. Estamos recebendo, às pencas, estrangeiros para trabalhar. E para onde estão indo? Exatamente para áreas que os brasileiros rejeitam: o trabalho intensivo, repetitivo, que paga mal e que os obriga a extenuantes jornadas de trabalho. É assim na agricultura, na construção civil, nos frigoríficos e até no telemarketing, por outras razões. Não raro, os nossos 0800 foram invadidos por trabalhadores com sotaque hispano, português e americano; alguns, seguramente fixados em algum ponto do território; outros, na bacia do Prata ou no além-mar.
O perfil do mercado de trabalho está mudando radicalmente. A queda na taxa de fecundidade, o aumento dos anos de escolaridade da população, a melhoria na renda e o aumento da expectativa de vida têm revelado que nosso país mais se parece com os do Hemisfério Norte
do que com nossos vizinhos do Sul. Quem quiser tirar as dúvidas, basta ver a excelente animação disponível no portal www.worldmapper.org. Verão que, para as projeções propostas, nossa cara está muito mais próxima daqueles que nos descobriram ou nos acharam há mais de 500 anos do que daqueles com os quais costumamos nos comparar.
Nessa condição, há uma queixa generalizada, sobretudo da indústria, de que falta mão de obra qualificada. Onde os estudos são possíveis de
alcançar, a informação é de que não faltariam trabalhadores qualificados. Mas as respostas são sempre muito precárias, porque precários
são os nossos dados. Infelizmente, não desenvolvemos, ao longo dos últimos anos, informações consistentes, como o fazem com quase exatidão Canadá, Estados Unidos e Austrália, que conseguem fazer projeções de muitos anos.
Um dos nossos maiores problemas consiste no fato de que, em que pese a reorganização – nos últimos 20 anos, a partir do governo Itamar Franco – do Sistema Público de Emprego e o acoplamento a ele do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que financia o seguro-desemprego, a qualificação profissional e a intermediação de mão de obra, não logramos conectar o sistema ocupacional com o sistema educacional. Dessa forma, quando se reclama de que falta mão de obra qualificada, não se sabe ao certo do que se está falando. A reclamação provém das deficiências do sistema educacional ou do sistema de preparação ao trabalho? Em ambos os casos, a culpa recai sobre o Estado, mas a crítica, em particular vinda das indústrias, contémparte do fundamento.
Getúlio Vargas, ao entregar a Roberto Simonsen o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), em 1942, o fez sob coação. Teria sido dito a ele, conforme relatos existentes em várias biografias disponíveis, que os industriais teriam duas alternativas: ou assumiam a formação profissional, ou essa atividade seria passada para os próprios trabalhadores.
Dessa forma, o Sistema S tem sua responsabilidade. Durante quase 70 anos, operou quase no olimpo, não aceitando qualquer discussão no âmbito da sua regulação. Somente em 2008 o Ministério da Educação, com o apoio do industrial José de Alencar, vice-presidente da República, conseguiu algumas mudanças, trazendo o importante sistema para atuar na lógica das políticas públicas neodesenvolvimentistas operadas pelo então presidente Lula.
Desde a criação do Sistema S, na década de 1940, tivemos ao menos três grandes programas de preparação para o trabalho. No bojo das reformas de base, com Jango, tivemos o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra Industrial (Pipmoi), que esteve alojado no Ministério da Educação até os anos 1970, quando passou para o Ministério do Trabalho. Nos anos 1990, tivemos o Plano Nacional de Educação Profissional (Planfor), que, durante o governo FHC, teria qualificado mais de 10 milhões de trabalhadores em cursos rápidos de formação. Durante o governo Lula, o Plano Nacional de Qualificação (PNQ) deu continuidade aos cursos de formação profissional,mudando
conceitualmente o formato dos cursos e ampliando sua carga horária, mas atingindo muito menos gente. Com isso, gradativamente, a agenda da qualificação profissional foi desaparecendo do Ministério do Trabalho, por onde esteve ativa por mais de 30 anos, tendo existido inclusive um Conselho Federal de Mão de Obra para regular o assunto.
Dois importantes programas na alçada do Ministério da Educação também ocorreram nos últimos 25 anos. Durante o governo Sarney, houve o Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Técnico (Protec); durante o governo FHC, o Programa de Reforma da Educação Profissional
(Proep). Nos governos Lula e Dilma, ocorreu a expansão da Rede Federal de Educação Profissional. Qual a contribuição desses programas para a educação e para o trabalho? Nossa pouca tradição em avaliação não nos permite muitas conclusões.
As iniciativas existentes hoje noâmbito do Ministério da Educação conseguirão atingir algo próximo a 10% de matriculados na sua proporção
das matrículas dos estudantes do ensino médio. É muito pouco. Essa proporção nos países desenvolvidos chega a 50%. Esse problema é agravado por duas questões. A primeira é a insistência de apartar os cursos técnicos, transformando-os em acadêmicos e desvinculando-os do mundo do trabalho; a segunda é a de não permitir a certificação nessa ampla rede — Sistema S e Rede Federal — de saberes e conhecimentos adquiridos no mundo do trabalho, como acontece no exterior, onde o profissional comparece a uma dessas escolas ou unidades de certificação e faz uma prova. Esta certificação atesta o nivel de conhecimento onde ele se encontra; a terceira é a ausência  da orientação profissional no âmbito do Sistema Público de Emprego, que se restringe a habilitar, anualmente, oito milhões de trabalhadores ao benefício dopagamento do seguro-desemprego; uma quarta questão é o nosso nada democrático sistema de relações de trabalho, que não concebe, no âmbito da negociação coletiva, a questão qualificação; por fim, a ausência de políticas de coordenação — pacto entre capital e trabalho—em nível macroeconômico.
É consenso na literatura internacional que o sistema dual alemão é o melhor sistema de formação profissional do mundo. Não é por menos que o Senai conta, há alguns anos, com a assessoria do Instituto Fraunhofer. É também consenso que o sistema alemão é bom, mas é caro. Como se fazer educação profissional fosse barato. A questão não é essa. Quais objetivos cumpre um sistema de educação profissional? Este assunto já era uma obsessão até para educadores como Anísio Teixeira, que via na preparação ao trabalho uma das formas de dar sentido ao projeto
da Escola Nova, que propugnava pela educação pública e gratuita em todos os níveis.
Essa desarticulação provocada nos últimos anos por uma enormidade de esforços duplicados ganhou alento com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). O programa concentrou em torno de si uma gama de ações de qualificação profissional que estavam espalhados em nada menos do que 11 ministérios. Cada ministério fazia, a seu modo, um tipo de qualificação profissional. Ao concentrar a oferta de cursos de qualificação profissional em torno da Rede Federal e do Sistema S, o Pronatec deu consistência a estes cursos, ao mesmo tempo em que afastou os aventureiros e as ONGs criadas para receber os cursos do FAT. Ponto positivo. Entretanto, um dos problemas é que, embora tenha retornado ao MEC, a formação profissional, como o fora há 50 anos, não tem tradição em operar o diálogo social no campo das relações do trabalho, terreno do Ministério do Trabalho, que praticamente desapareceu de cena nessa área.
No momento, o Pronatec mobiliza essa ampla rede e está presente em quase metade dos municípios brasileiros, oferecendo cursos que foram a tradição dos conhecidos “cursos do FAT”, de até 160 horas. O problema é que, se não houver uma inteligência necessária,continuaremos a formar para as estatísticas. Precisamos encarar os 54 milhões de brasileiros que não terminaram o ensino fundamental e os 70 milhões com mais de 25 anos que não concluíram o ensino médio. No Hemisfério Norte, as melhores experiências de formação profissional só começam depois do ensino médio ou durante ele. Se continuarmos com esse formato no Brasil, o sistema educacional não contribuirá como sistema ocupacional e vice-versa.
Nessa direção, é necessário encarar a criação de um sistema de certificação conforme disciplina o artigo 41 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e orientá-lo para um itinerário formativo com vistas à emissão de uma certificação em cursos técnicos. Por outro lado, de nada adianta a ênfase na educação profissional se as empresas não a valorizam. O discurso das empresas é correto. Mas como justificar o fato de o
Brasil trocar toda a sua força de trabalho de dois em dois anos? É o país que tem a mais alta taxa de rotatividade de mão de obra do mundo. As empresas usam a rotatividade para reduzir os custos do trabalho. Dessa forma, é evidente que falta mão de obra. Quando o trabalhador começa a se inserir nas atividades, é demitido. Portanto, é preciso que esse tema seja regulado no âmbito da negociação coletiva em nívelmacro.
O sucesso dos países avançados se deu porque souberam operar políticas em nível macro, protegendo suas economias, obtendo acordo no campo do trabalho e evitando a chamada “doença holandesa”, como é conhecida a relação entre exportações e recursos naturais que faz com que o país se especialize na produção de bens primários e abandone a produção manufaturada. Devido às vantagens comparativas, a produção de bens naturais pode ser benéfica, mas, no longo prazo, pode trazer problemas ao desenvolvimento econômico. O nível de coordenação
das relações de trabalho explica por que determinados tipos de capitalismo prosperaram de forma diferente. Temos uma vantagem excepcional. Poder aprender com o erro dos outros. Estamos dispostos?
 
Remi Castioni é professor da Faculdade de Educação da UnB e pesquisador da área de políticas públicas de educação profissional e tecnológica
(Do Correio Braziliense)