Apeoesp repudia MP do ensino médio e defende escola inclusiva

Após forte reação contrária e no mesmo dia nacional de luta em que os professores paralisaram suas atividades em todo o Brasil (somente no estado de São Paulo, 50% da categoria paralisou as escolas e houve a realização de uma assembleia com mais de 30 mil professores) o MEC divulgou nota pública recuando quanto à retirada da obrigatoriedade da oferta de Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia.
No texto da minuta da Medida Provisória, divulgado posteriormente, tais disciplinas constam como obrigatórias, embora esta obrigatoriedade esteja relativizada pelas demais mudanças propostas, sobretudo quanto à relação entre as partes comum e diversificada na futura Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ainda está em discussão.
De forma geral, a proposta de reforma de ensino médio promove alterações na carga horária; na composição e estrutura dos componentes curriculares; no financiamento; na forma de ingresso no ensino superior; na regulamentação da profissão docente, definindo que profissionais poderão exercer a docência; na concepção de ensino médio.
O governo utiliza método autoritário, peculiar à sua gestão

A primeira crítica que devemos fazer ao projeto é quanto ao método utilizado. Enviar uma reforma deste porte ao Congresso Nacional por meio de Medida Provisória, constitui um verdadeiro atentado contra a democracia e um desrespeito a todas as pessoas e instituições que vinham participando do processo de debates sobre a BNCC, além de constituir desvio de atribuição, tendo em vista que cabe ao Conselho Nacional de Educação (CNE) as definições sobre diretrizes curriculares em nosso País.
Quanto a isto, devemos lembrar que o Ministério Público Federal (MPF), por meio de seu Grupo de Educação, manifestou-se a respeito em nota divulgada no dia 19 de setembro, na qual critica a utilização de MP neste caso. Pondera, também, que é uma ilusão incompatível com o regime democrático imaginar que um governo pode, sozinho, apresentar uma solução pronta e definitiva para um tema que envolve milhares de instituições públicas e privadas, centenas de organizações da sociedade civil e milhões de profissionais. E diz ainda que “mais que inefetiva, a apresentação de soluções fáceis para problemas complexos é um erro perigoso.”
Para se ter ideia, existem diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil, para o ensino fundamental e para o ensino médio, mas o governo envia um projeto de reforma do ensino médio sem que sequer tenha sido iniciada a implementação de suas diretrizes curriculares. Isto mostra que esta gestão aplica uma política de governo e não de Estado, pois se assim fosse, daria continuidade ao que é positivo, amplamente debatido e aceito pela comunidade educacional do País: professores, estudantes, funcionários, pais, universidades, sindicatos e gestores.
Esta reforma não avança na qualidade do ensino médio; significa retrocesso
Devemos observar que há uma opinião generalizada na sociedade quanto ao ensino médio atual, no sentido de que ele carece de uma identidade para o jovem estudante, ou seja, na sua configuração atual este nível de ensino não atende às expectativas de quem deseja uma formação compatível com as necessidades do mundo do trabalho e para a vida.
Neste sentido, as Diretrizes Nacionais Curriculares para o Ensino Médio, se não resolvem todos os problemas, apontam caminhos para a superação das atuais dificuldades do ensino médio e foram resultado de um processo amplo, aberto e participativo de elaboração conduzido pelo CNE.
Tais diretrizes incorporam como dimensões da formação humana, pressupostos e fundamentos para um ensino médio com qualidade social para o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura, tendo o trabalho e pesquisa como princípios educativos e pedagógicos, articulados de forma harmônica e integradora no projeto político-pedagógico e na matriz curricular. Em sua essência, a proposta do governo ignora essas diretrizes.
Os estudantes brasileiros têm condições de ficar mais tempo na escola?

Em seu artigo 1º, a MP define que a carga horária mínima anual do ensino médio deverá ser progressivamente ampliada das atuais 800 horas para 1.400 horas, observadas as normas do respectivo sistema de ensino e de acordo com as diretrizes, os objetivos, as metas e as estratégias de implementação estabelecidas no Plano Nacional de Educação (PNE).
A ampliação do tempo escolar na educação básica, em todos os seus níveis, é uma necessidade. Entretanto, devemos admitir que, especificamente estudantes do ensino médio estão trabalhando, e sua contribuição é essencial para ajudar na renda familiar. Estaria o governo Temer disposto a ampliar o Bolsa-Família para que estes jovens pudessem se dedicar apenas aos seus estudos?
Como sabemos que isto não irá ocorrer, pois este governo atua justamente no sentido de congelar a destinação de recursos para a educação e demais áreas sociais, o que ocorrerá é que esses estudantes serão excluídos dos bancos escolares, pois não haverá a opção pelo ensino noturno, que, no estado de São Paulo, por exemplo, é o período onde tem havido a maior ocorrência de fechamento de classes. Assim, este jovem somente poderá voltar a buscar sua formação de nível médio na forma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que infelizmente, via de regra, oferece um ensino aligeirado, bem ao gosto deste governo, com menor custo. Assim sendo, a EJA, que deveria ser uma política intermediária, passa a ser uma política perene
Se a educação em tempo integral é, de fato, uma tendência hoje no Brasil, contemplada em metas e estratégias do PNE, ela não pode ser imposta de cima para baixo. Para que ela ocorra, com a qualidade que desejamos, é preciso que os estudantes queiram frequentá-la e é preciso também que os pais queiram a ela enviar seus filhos. Caso essas duas partes não convirjam, a educação em tempo integral não atingirá seus objetivos ou se transformará em escolas para poucos e não para todos.
Desejamos uma educação integrada, que articule as partes comum, diversificada e profissionalizante do currículo. Este projeto não pode ser pensado e executado de forma fragmentada desconsiderando a concepção de educação básica que vem norteando as legislações da educação brasileira nos últimos 13 anos: processo contínuo e articulado desde a educação infantil, passando pelo ensino fundamental, até o ensino médio, com suas respectivas modalidades.
Para nós, a proposta de ampliação da carga horária na educação básica, elemento basilar na implementação das escolas de tempo integral, deve ser feita de forma articulada entre os níveis de ensino, iniciando-se pelo ensino fundamental. Ao mesmo tempo, a simples ampliação da carga horária, por si só, não garante a qualidade do ensino. Mais tempo na escola não significa mais formação. Nossa concepção é de educação integrada para nossos estudantes, seja ela em tempo integral ou não.
A ampliação da carga horária não terá impacto positivo no ensino médio sem que se resolvam os problemas estruturais hoje presentes nas redes públicas de ensino: valorização dos profissionais da educação – formação, condições de trabalho, salários, jornada de trabalho, com a destinação de no mínimo 1/3 da mesma para atividades extraclasse.
Ao contrário, mais tempo na escola, sem que ela seja convidativa para a permanência do estudante, fará com que o ensino em tempo integral se torne chato e improdutivo, levando os alunos a abandonarem os estudos.
Entre as condições para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem com qualidade, é necessário, por exemplo, repensar o projeto arquitetônico das escolas, que é arcaico, basicamente o mesmo desde que D. João VI aqui chegou – lousa, giz e apagador. Necessária, também, a ampliação do Bolsa-Família para que os estudantes do ensino médio possam se dedicar aos estudos e não precisem deixar a escola para trabalhar.
Currículo “a la carte”

A nosso ver, a proposta do Governo Temer não resolve nenhum dos problemas centrais do ensino médio. Ao contrário, ela se rende a eles ao adotar soluções simplistas e cria novos problemas que poderão ampliar ainda mais as deficiências hoje existentes.
Quanto à sua estrutura, a medida altera o currículo do ensino médio a partir de cinco áreas, acrescentando as áreas de I – linguagens; II – Matemática; III – ciências da natureza; IV – ciências humanas; a V – formação técnica e profissional.
O primeiro ano teria formação básica para todos os estudantes e, a partir do segundo ano, o estudante faria opção por uma destas áreas de formação, podendo escolher ao final da conclusão do ensino médio por mais uma área de formação. Entretanto, a definição das opções (até duas) a serem oferecidas pelas escolas ficaria sob a responsabilidade dos sistemas de ensino. Leia-se Secretarias Estaduais de Educação.
Haveria uma redução do conceito de Base Nacional Comum Curricular. Primeiramente, porque os estudantes apenas no primeiro ano teriam a formação geral comum. Em segundo, porque o total da parte comum seria reduzido a 1.200 horas na totalidade do ensino médio, lembrando que o ensino médio passaria a ter 4.200 horas.
Proposta rebaixa o currículo e a qualidade do ensino

O percentual muito alto de disciplinas optativas, determinadas pelos sistemas de ensino, dentro do cômputo da carga horária total do ensino médio, se configura, para nós, como uma medida equivocada. Se é verdade que somos favoráveis à destinação de parte da carga horária à implementação da parte diversificada articulada à parte comum do currículo, a ampliação excessiva deste tempo pode resultar no rebaixamento da formação integrada do estudante, que tem na parte comum conteúdos essenciais para todo o seu itinerário formativo, seja do ponto de vista profissional, seja para a continuidade dos estudos, seja para os demais aspectos de sua vida.
Apenas Português, Matemática e Inglês seriam componentes curriculares nos três anos do ensino médio. O Inglês, aliás, seria disciplina obrigatória a partir do sexto ano até o final do ensino médio. Outra língua estrangeira poderia ser oferecida no ensino médio (preferencialmente o Espanhol).
O ensino de Arte constituiria componente curricular obrigatório na educação infantil e ensino fundamental. Neste sentido, entende-se que no ensino médio deixaria de ser componente obrigatório, embora o MEC diga que a obrigatoriedade esteja subentendida. Mesmo que Arte possa compor as áreas de humanas no ensino médio, haverá redução da parte comum, que seria restrita ao primeiro ano.
A Educação Física, da mesma forma que Arte, ficaria circunscrita como componente curricular obrigatório na educação infantil e ensino fundamental. Porém, a prática fica facultativa ao aluno.
A questão não é tirar ou acrescentar disciplinas e sim de procedimento. O atual governo limita-se a alterar o quadro de disciplinas porque não se dispõe a mexer de forma radical e estrutural na formação inicial dos professores, estruturando-a por áreas de conhecimento, para que esta tenha impacto positivo na qualidade de toda a educação básica. Ao não realizar esta mudança, o governo fica discutindo o número de disciplinas, sendo que o fundamental não está nesta questão, mas no tratamento de cada disciplina e na adoção de procedimentos inter e transdisciplinares, procedimentos esses que devem estar intrínsecos nos cursos de formação dos professores.
Não se trata, portanto, de extinguir disciplinas, advogando-se a tese da polivalência do professor. Polivalência sem a devida formação é sinônimo de diluição do conhecimento. Cada disciplina tem seu estatuto próprio e quanto mais o professor se aprofundar no conhecimento e praticar a sua disciplina, mais ele será capaz de realizar este diálogo e mais conhecerá sua área com profundidade científica e não de forma aligeirada, como tem sido a formação de professores, hoje sem a devida profundidade.
Cabe registrar, também, que a opção das áreas – até duas – não seria individual dos estudantes, na medida em que estes teriam que optar entre as áreas definidas pelo sistema de ensino, leia-se Secretaria de Educação, a qual poderia concentrar determinadas áreas. Isto pode provocar uma série de novos problemas para os estudantes de escolas que não oferecem as disciplinas de seu interesse. Além de fazer com que eventualmente tenham que se deslocar para outras unidades escolares, esta diferenciação curricular compromete o próprio direito de ir e vir dos estudantes entre escolas dentro do mesmo sistema de ensino e de um sistema para outro, pois a definição da BNCC deveria assegurar aos estudantes o mesmo padrão de qualidade do ensino em todas as escolas, em todo o território nacional, respeitadas as especificidades regionais e de cada sistema de ensino.
No nosso entendimento, a proposta do Governo abandona o conceito de formação integrada dos estudantes, visando sua atuação consciente e intelectualmente autônoma na sociedade, para adotar uma antiga concepção de ensino médio como uma espécie de treinamento para o mercado de trabalho. Isto se evidencia nas alterações propostas no artigo 36 da LDB, que seria totalmente reformulado. A flexibilização proposta enfraquece o currículo. A retirada da referência ao ensino obrigatório de Filosofia e Sociologia nos parece, neste sentido, intencional, embora essas disciplinas sejam obrigatórias na proposta de Base Nacional Comum Curricular. Como a formulação da BNCC ainda está em aberto, nada garante que tal mudança não possa ser nela consolidada.
Um profundo ataque à profissão docente

No que se refere à contratação dos profissionais da educação, o retrocesso é ainda mais grave. A mudança que se pretende introduzir no artigo 61 da LDB significa uma derrota para qualidade da educação e desregulamentação da profissão docente, tendo em vista que ficam abertas possibilidades de contratação de portadores de profissionais “com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação”.
A habilitação profissional para exercício da profissão docente foi uma luta desenvolvida pelos professores, sobretudo no estado de São Paulo, a partir do final da década de 1980, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e foi consolidada na LDB, que se não atendeu todas as nossas expectativas, trouxe avanços importantes para a educação brasileira. Hoje, em lugar de tomar medidas para superar as dificuldades dos professores do ensino médio, relativas à formação inicial e continuada, carreira e remuneração (pois são essas deficiências que afastam estes profissionais dos sistemas públicos de ensino), a proposta do governo as incorpora e a elas se rende. Para contornar, então, a falta de professores, permite que outros profissionais façam da docência nas escolas públicas um “bico” em paralelo ao exercício de suas profissões eletivas.
Como podemos aceitar isto? Se um professor ou uma professora não pode exercer outras profissões para as quais não está habilitado/a, como se pode permitir que profissionais de outras áreas, sem a habilitação requerida possam se incumbir desta missão tão fundamental que é a formação de nossos estudantes? E, no caso de ser habilitado, sem a parte pedagógica hoje exigida, de acordo com a Resolução CNE/CEB Nº 2/1997, que dispõe sobre os programas especiais de formação pedagógica de docentes para as disciplinas do currículo do ensino fundamental, do ensino médio e da educação profissional em nível médio.
Haverá, repetimos, a redução da parte comum na futura BNCC, na qual estariam garantidos todos os componentes curriculares e que, com a aprovação da Medida Provisória, ficaria restrita ao primeiro ano. No conjunto do ensino médio, a redução seria drástica. De forma geral apenas os professores de Português, Matemática e inglês teriam aulas nos três anos do ensino médio.
Como observação geral, as mudanças propostas devem levar à demissão de centenas de milhares de professores no País e o crescimento da desmotivação dos jovens que pretendem ser professores. Diante do impacto negativo dessas medidas no ensino, a desmotivação que hoje já existe, tenderá a crescer.

Sobre o financiamento

Altera a política do FUNDEB, instituindo a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Esta nova forma de financiamento ficaria vinculada ao Projeto Político Pedagógico, com base no número de alunos matriculados, com transferência anual, que poderiam ser aplicadas em manutenção e desenvolvimento das escolas, pode abrir brecha para que estes recursos não possam ser aplicados em recursos humanos. A gestão destes recursos ficaria a cargo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), dispensando convênio, acordo, contrato ou instrumento congênere. Com isto, os mecanismos de gastos ficam com menos controle.
Ingresso no ensino superior

Estabelece a possibilidade de se convalidar conteúdos do ensino médio para aproveitamento no ensino superior. Pode-se supor que aqueles que elaboraram esta proposta imaginam que se determinado estudante ao concluir seus estudos no ensino médio em determinada área teria uma formação mais consolidada na mesma. Todavia, se este for o caso, prejudica-se uma formação mais ampla básica que todos os estudantes do ensino médio deveriam ter.
Além disso, a proposta não aborda a forma de ingresso no ensino superior, aumentando a apreensão quanto às possibilidades de acesso à universidade. Acrescente-se, ainda, que possibilita a organização do ensino médio em módulos, com terminalidade específica.

Conclusão

Esta proposta de reforma de ensino médio contém a mesma concepção de exclusão do ensino médio que tínhamos no passado, no qual havia uma escola para os filhos da classe trabalhadora com uma formação mais voltada “para o mercado de trabalho”, leia-se formação técnico-profissional; e outra para os filhos da elite, que garantiria uma formação mais geral, com vista ao acesso às melhores universidades, ao mundo dos negócios e aos mais altos cargos da administração pública. Não é a primeira vez que vemos este modelo. Na vigência da Lei 5.692/71 (antiga LDB), mesmo com a imposição legal do modelo técnico, as escolas particulares estabeleciam seu currículo preparando seus estudantes de forma diferenciada.
Além do caráter excludente, esta proposta reduz a possibilidade de uma formação mais crítica para a maioria dos estudantes matriculados em escolas nas quais sejam oferecidos poucos conteúdos de formação humanística.
Por tudo o que foi exposto, não aceitaremos esta reforma e lutaremos para que seja rejeitada pela sociedade e pelo Congresso Nacional. Queremos ensino de qualidade, que atenda aos anseios e necessidades dos filhos e filhas da classe trabalhadora. Lamentavelmente, esta proposta de reforma do ensino médio combina com o perfil deste governo biônico.
* A professora Maria Izabel Azevedo Noronha, a Bebel, é presidenta do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp)
(da Rede Brasil Atual)