Aborto ofusca debate sobre temas femininos

RIO – Enquanto os presidenciáveis se esforçam para explicar o que pensam sobre o aborto, estão deixando de responder sobre mercado de trabalho para a mulher, equiparação salarial entre homens e mulheres, rede de creches… Para cientistas políticas, pesquisadoras de políticas para a população feminina e artistas, o debate moral em torno do aborto que tem ocorrido na campanha presidencial nos últimos dias tem deixado de lado problemas crônicos vividos pelas mulheres brasileiras.
Questão enfrentada pela mulher de baixa renda que está entre as mais citadas como fora da discussão presidencial é a falta de creches públicas para as mães pobres. A atriz Claudia Jimenez diz assistir a esse problema entre as funcionárias da academia de ginástica da qual é sócia:

– Vejo funcionárias que passam por isso, brinco que vou abrir uma creche para elas. O tema da creche, no começo da campanha, até que foi falado , mas depois se diluiu. E o que mais tem é mulher querendo trabalhar e não tendo com quem deixar o filho, tendo que arranjar vizinha para cuidar da criança. Ou então a mulher precisa sair mais cedo do trabalho, mas aí o empregador manda embora – conta Claudia Jimenez. – Tendo onde pôr o filho, a mulher pode trabalhar, se instruir… Não tem que discutir o aborto, tem que discutir por que tem mulher que engravida sem querer.

– Não se pode falar em igualdade no mercado de trabalho sem uma rede de creches – conclui Gilda Cabral, fundadora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), que também cita a violência doméstica como tema fora de pauta na campanha. – Assim como programas de assistência a idosos ou doentes que precisam de cuidador; nesses casos a carga sempre fica para a mulher.

Professora de pós-graduação em políticas públicas do Instituto de Economia da UFRJ, Lena Lavinas diz que o investimento em creches e escolas em tempo integral é o que aproximou países europeus, por exemplo, da melhoria econômica e do desenvolvimento:

– Mulheres pobres trabalham menos horas que homens. Se puderem ter os filhos em uma creche o dia todo, vão ter mais chances de melhorar a renda per capita da família. Sob o ponto de vista da erradicação da pobreza, o acesso à creche e à escola em tempo integral é mais eficiente que o Bolsa Família, apesar de esse programa também ser necessário.

Segundo a pesquisadora, apenas 15% das crianças entre 0 e 3 anos no Brasil são contempladas com acesso a creches:

– Esse debate sobre aborto não é objetivo, é ideológico. Acho que a única com proposta sobre relação de gênero é Dilma. Mesmo assim, por conta desse debate, não foi adequadamente apresentada – diz Lena, em alusão à proposta da petista de construir creches.

A escritora Rose Marie Muraro crê que falta à campanha presidencial debater formas de aumentar a renda e a escolaridade das mulheres – que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad) 2009, do IBGE, já é a chefe de família em 22 milhões de lares. Desde 1999, esse número cresceu 81%, contra 15% para os homens.

– No Bolsa Família, o dinheiro é dado à mulher, que é considerada a que toma conta da família. Esse modelo deveria ser completado por serviços de agências de microcrédito ou bancos comunitários, por exemplo, para moradoras nos bolsões de pobreza – comenta Rose Marie. – Na população de baixa renda, a da mulher é a mais baixa. Só que, por outro lado, a mãe influencia mais na renda e na escolaridade do filho do que o pai: o filho de uma mulher pobre tem 11 vezes mais chance de continuar na pobreza do que aquele com o pai pobre. Além disso, o filho de uma analfabeta tem chance 23 vezes maior de ser analfabeto do que aquele com pai analfabeto.

A cientista política Fernanda Feitosa, que pesquisa a participação feminina na representação política partidária, afirma que o debate eleitoral em torno das necessidades femininas está incipiente. Não se fala, por exemplo, diz Fernanda, na elaboração de programas que combatam a dupla jornada feminina:

– As políticas para mulher têm sido tratadas no plano moral, não num conceito estadista.

Lucinha Araújo, presidente da Sociedade Viva Cazuza, diz que a discussão política sobre propostas para mulheres erra no tom:

– O Brasil ainda não conseguiu separar Estado de religião. Devemos achar o meio termo e discutir se o Estado deve interferir tanto na vida íntima das pessoas, como na questão do aborto. O corpo é da mulher, não uma questão de Estado. Deveríamos pensar mais na assistência, como o direito à creche e à saúde.