A falta de capacitação e o desafio da classe digital

Apesar de amplamente disseminada fora da escola, a tecnologia ainda custa a entrar na sala de aula; entenda por que isso ocorre e conheça exemplos de iniciativas
Embora a tecnologia esteja disseminada fora da escola, aplicá-la em sala de aula ainda é um desafio para os educadores. Mesmo em São Paulo, a maior cidade da América do Sul, são poucos os colégios que aplicam – com planejamento, seleção adequada de materiais e capacitação de professores – recursos digitais além do uso simples de computador e iPad.
“Infelizmente, o uso da tecnologia com qualidade em sala de aula ainda é pequeno. Isso acontece por dois motivos principais: o primeiro, a falta de capacitação dos professores para utilização das tecnologias digitais; segundo, a falta de infraestrutura tecnológica adequada nas escolas, como Wi-fi de qualidade”, explica Martha Gabriel, pesquisadora em tecnologias da educação e autora do livro Educ@r – A Revolução Digital na Educação.
Para Martha, a falta de treinamento é, entre os dois fatores, o maior gargalo. “Professores capacitados superaram infraestrutura deficiente, mas nenhuma infra, por melhor que seja, é usada – e bem aproveitada – sem capacitação.
Segundo ela, embora o uso da tecnologia ainda parte mais da ação individual do professor do que das escolas, as instituições estão se mobilizando, no Brasil e no exterior, para abraçar o digital não apenas na sala, mas em um projeto educacional mais amplo.
Abismo. As instituições, por sua vez, relatam resistência dos docentes mais antigos e observam que há um fosso entre as práticas ensinadas aos novos professores nas universidades e a realidade da sala.
“Há um descompasso geracional. Ainda se usa muito a tecnologia para replicar modelos que não dão certo. A escola tem de formar o aluno para que ele traga a demanda tech e use a favor do conhecimento. É difícil fazer, mas muito pior não fazer”, afirma Valdenice Minatel, coordenadora do Departamento de Tecnologia Educacional do Colégio Dante Alighieri.
Na tentativa de driblar os obstáculos, algumas escolas criaram coordenadorias específicas para a tecnologia educacional, como o Colégio Porto Seguro. “Para cada R$ 1 que gastamos com aparelhos digitais, outros R$ 5 são investidos na formação dos docentes. É um desafio. Ainda não sabemos se os alunos aprendem mais dessa forma, vamos descobrir na prática”, diz Renata Pastore, diretora de Tecnologia Educacional do Porto.
Nesse colégio, os alunos de 5 e 6 anos transformaram tabuleiros usados no aprendizado das sequências numéricas, feitos por eles com cartolinas, em jogos eletrônicos. Fotografaram os desenhos das trilhas, gravaram os áudios e montaram os jogos com a ajuda de um aplicativo gratuito.
“Fiquei muito feliz ao ver meus alunos participando ativamente de todas as etapas do aprendizado. Além dos objetivos da Matemática, eles estavam aprendendo, em uma única atividade, Linguagens e Informática”, diz a professora Maria Fernanda Reis Balugani.
No Porto, alunos de 2 e 3 anos interpretam textos com auxílio da tecnologia. Após lerem O Caso do Bolinho, da escritora Tatiana Belinky, eles jogaram games, desenvolvidos pelas professoras, com os elementos da obra. Muitos ajudavam os colegas a completar o jogo nos tablets, recontando uns para os outros a história.
No Colégio Santa Maria, no Jardim Marajoara, as crianças do 4.º ano do fundamental fizeram interpretação de texto em outro formato. Primeiro, aprenderam a programar histórias em quadrinhos virtuais. Depois, recontaram contos da escritora Ana Maria Machado. “A gente deu uma adaptada nas falas para ficar mais atual”, conta Matheus Siqueira de Azevedo, de 9 anos.
Stop motion. Também no Santa Maria, a professora do 8.º ano Andreia Pistori, de Artes, tratou de Modernismo e Abstracionismo no Brasil de um jeito diferente. Pediu que os alunos fizessem filmes em stop motion (técnica de animação quadro a quadro, feita com sequências de fotografias) da obra A Morte do Abaporu, de Tarsila do Amaral. Eles modelaram em massinha os elementos da pintura. “Não deixei de dar a teoria, mas ensino os alunos sobre arte na prática e de uma forma totalmente nova para eles.
No Colégio Pueri Domus, o professor de Biologia Gabriel Antonini passou um longo período fazendo testes e curadoria do material tecnológico que apresentaria aos alunos. “Não basta ser bonito, tem de acrescentar.” Foi com um aplicativo 4D que ele conquistou tanto alunos – da sua sala e de outras – quanto pais. Apontando a câmera do celular ou do tablet para um desenho impresso em uma folha sulfite, ele consegue mostrar diversos sistemas do corpo humano em 4D. “Consigo explicar de uma forma muito melhor, já que é proibido no Brasil a dissecação de mamíferos”, diz.
Thales César Giriboni, de 16 anos, do Dante, se interessou tanto por tecnologia que passou a desenvolvê-la para os professores e colegas. Ele construiu uma agenda eletrônica capaz de sincronizar os dados personalizados dos alunos, como compromissos diários e planos de estudo, com as tarefas de toda a turma. “Quem perdeu a aula, pode ver depois o que foi ensinado, se foi dada prova ou não.”
Giriboni foi o que os educadores chamam de “protagonista” do próprio conhecimento. É exatamente isso, apostam, que a tecnologia com qualidade dentro da sala de aula poderá disseminar.
Estadão.edu 17/09