A educação infantil para quem vive em ocupação

ocup.menor_Carta Fundamental publica artigo sobre a situação da educação infantil das crianças que vivem em ocupações. Na reportagem, a revista mostra que, como a maioria das pessoas, os sem-teto também lidam com a espera por vagas em creches e pré-escolas, principalmente nos grandes centros urbanos, mas a precariedade de renda e a falta de moradia agravam o problema. Esperar o bebê crescer para sair para trabalhar e ganhar dinheiro é um luxo inexistente para a maioria das pessoas em tal condição. Confira a matéria a seguir.

A educação infantil para quem vive em ocupação

Como funciona uma creche improvisada por movimento de luta por moradia e a vida de quem não tem tal opção

Por Cinthia Rodrigues
O salão de taco com peças soltas no chão é grande o suficiente para fazer a mesa com dez lugares parecer pequena. Além dela, o canto oposto à janela de vidros quebrados é ocupado por um enorme armário embutido com portas faltantes. Uma escrivaninha, uma televisão e dois conjuntos de poltronas de sala de espera completam a mobília, mas ainda sobra um bom espaço livre para a brincadeira que por semanas preencheu a maior parte dos dias para duas dezenas de crianças agrupadas ali: empurrar um carrinho de supermercado com alguns bebês dentro.
No fim de fevereiro, o carrinho quebrou. “Muito peso, estava tombando na curva”, explica Shirley Santos da Silva, 37 anos, coordenadora da creche improvisada na Ocupação Marconi, que abriga 130 famílias no antigo edifício comercial São Manuel, bem no Centro de São Paulo. A reserva do espaço, equivalente a pelo menos quatro vezes o tamanho das salas convertidas em apartamentos nos demais 12 andares, é um indicativo da preocupação com Educação Infantil que tem quem vive nessa situação.
Como a maioria das pessoas, os sem-teto também lidam com a espera por vagas em creches e pré-escolas, principalmente nos grandes centros urbanos, mas a precariedade de renda e a falta de moradia agravam o problema. Esperar o bebê crescer para sair para trabalhar e ganhar dinheiro é um luxo inexistente para a maioria das pessoas em tal condição. Da mesma forma, raramente alguém pode pagar quem cuide das crianças enquanto está fora, e a falta de um endereço fixo também dificulta a manutenção das matrículas já efetivadas.
Muitas famílias mudam de bairro empurradas pela alta do aluguel ou motivadas por reintegrações de posse em favelas e ocupações, e acabam perdendo, juntamente com a casa, o atendimento educacional. O faz-tudo Emerson José, 38 anos, é um exemplo. Seu filho chegou a ter uma vaga em entidade conveniada no Belém, bairro da zona leste paulistana, onde morou de aluguel. Depois de um tempo sem conseguir arcar com as despesas, decidiu mudar para a Ocupação Marconi.
O menino de 2 anos, que ainda não fala, passa os dias com o pai e vai à creche improvisada no segundo andar, quando ele consegue trabalho. Foi o caso em uma das visitas de Carta Fundamental à ocupação. “Hoje você fica aqui”, Emerson falou para o garoto, passando a mão no cabelo ainda molhado do banho e foi embora.
Rafael não chorou. Depois de alguns minutos, foi para o único canto colorido, perto de uma pilha de tapetes emborrachados e lá ficou. A timidez foi notada por Roberlândia de Souza Melo, outra moradora que estava responsável pela creche naquele momento, mas ela não o alcançou. Concentrou seus esforços nos três bebês de 1 ano de idade, para os quais revezou o colo, deu comida na boca e trocou as fraldas.
Com o tempo, as crianças mais velhas, que frequentam o salão no turno do próprio horário de aulas, ganharam a atenção dele. Elas são a animação do lugar. Ajudam nos cuidados, lideram brincadeiras e apartam brigas entre os menores. Com um pano insuficiente para pular corda, improvisaram uma brincadeira de rodar o tecido no chão para quem sabia pular e depois cobra-cega. Em outro momento, um pedaço de jornal com anúncio de brinquedos rendeu algo parecido com uma roda de leitura. “Este é meu, esse é seu, você fica com este e você com este”, ia imaginando uma das meninas.
Depois, pegaram tintas e pintaram um rolo de papel branco com os dedos e um pincel improvisado com um palito de cabelo. Mas não deixaram os pequenos se aproximar. “Não dá, eles sujam muito”, lamentou a mais velha, aproveitando para devolver a pergunta à reportagem: “Sabe de algo diferente pra gente fazer com papel?”
Shirlei, a coordenadora, também está sempre em busca de alguma ajuda de material ou formativa. Mãe de cinco filhos entre 11 e 17 anos, ela morava em uma casa pertencente a uma igreja em Heliópolis, zona sul de São Paulo. Em troca, trabalhava na creche da instituição, mas, com a alta do aluguel no bairro, acabou despejada. Foi abrigada pela ocupação e coloca sua experiência a serviço das crianças. “Eu canto para elas, coloco desenho, mas não tenho estudo. Aqui a gente alimenta e cuida para que ninguém se machuque, mas não estimula tudo que eles podiam aprender.”
A autocrítica pode parecer dura, mas também é bem racional. A sede de brincar das crianças é nítida. Na falta de atividades e objetos mais adequados, eles exploram inesgotavelmente qualquer carrinho quebrado, cadeira, armário sem porta e, inclusive, a rotina da ocupação.
Um dia, quando um menino resolveu imitar Peter Pan e abriu os braços como se voasse, as crianças começaram uma a uma a escolher um personagem famoso para representar. Marina, 6 anos, avisou que ia ser Edinalva. “E como é que faz a Edinalva?”, perguntou Shirlei. A menina que vive sorrindo apagou a janelinhas nos dentes, subiu na cadeira e ainda esticou o pescoço, tentando parecer a mais alta possível. Falou o mais sério que pôde: “Gente, tô cansada de lutar por moradia para vagabundo. Não tem lugar para vagabundo!”
Edinalva Silva Franco, 42 anos, é a líder do Movimento por Moradia Para Todos, que administra a Marconi e mais três prédios entre os mais de 60 edifícios abandonados que servem de moradia no Centro de São Paulo. A imitação da menina bate com a primeira impressão que se tem da militante. Na manhã da minha visita, dava ordens a um técnico de internet enquanto conferia o corte do pano da oficina de costura e, por telefone, dizia quem pode ou não entrar nos prédios. “A tia dela? Não! Fala que não pode porque ela é encrenqueira. Arruma confusão. Diz para ela que eu falei isso”, afirmou entre outras broncas.
Ela se envolveu com a luta por moradia aos 17 anos, quando era estudante de Teologia e conheceu os movimentos na festa de aniversário de dez anos do Partido dos Trabalhadores (PT). Desde então, já conseguiu um cargo no Senado e três cicatrizes de bala de borracha nas pernas. Formou-se teóloga, mas logo foi fazer Direito e, depois, pós-graduação em Tributário e Defensoria Pública. Mais recentemente cursou Pedagogia e acaba de se matricular em uma terceira pós, em Ensino Superior. “Vou dar aula em faculdade. Explicar a mais-valia com alguns exemplos práticos”, diz.
Essa é a segunda creche que Edinalva cria, a primeira foi em 2000, na ocupação Brigadeiro Tobias, também no Centro. “Educação é tudo. Eu insisto com cada um aqui para estudar. Procurar ProUni, Fies, e ir atrás. Se você deixar a pessoa no quartinho, sem estudo, sem convivência, sem regras, não adianta nada”, diz.
Regras são a palavra de ordem nas ocupações cheias de cartazes sobre horários de entrada, silêncio, quadro dos responsáveis pela limpeza em cada dia e quem pode dar permissão para entrada – quase sempre Edinalva. Os pais que usam a creche regularmente pagam 100 reais pelo período integral, metade por até cinco horas. O café da manhã, o almoço e o café da tarde incluídos vêm do restaurante de outro prédio ocupado. “Cada mãe traz só fralda e o leite que a criança está tomando”, conta Shirlei.
Para a coordenadora Nacional da União dos Movimentos por Moradia (UNM), Graça Xavier, os problemas de falta de moradia e educação infantil são muito conectados. Ela sustenta que, em todo país, há mais espaço ocioso do que sem-teto, mas só chão não resolve o problema. Em São Paulo, por exemplo, calcula-se a existência de 130 mil famílias sem onde morar e o dobro de imóveis vazios. “Não dá para simplesmente entrar nesses locais por conta do vínculo com a comunidade e os principais fatores são emprego e escola”, afirma.
Um caso emblemático ocorreu em Pernambuco em 2007. A UNM liderou a ocupação de um terreno em Água Fria, no Recife, que abrigou o número recorde no estado de 1.328 famílias. Meses depois, ninguém tinha vaga para nenhuma criança no bairro. “Mães tinham perdido emprego, não havia previsão e deliberamos que era preciso ocupar a creche mais perto”, conta Lídia Brunes, coordenadora pernambucana do grupo.
Na segunda-feira seguinte, 50 famílias com crianças pequenas montaram barracos em frente o Centro de Educação Infantil e impediram a entrada dos matriculados. No fim da tarde, o diretor atendeu representantes do movimento. “Pediram só uns dias para adequar a equipe e distribuíram 38 crianças em duas unidades”, lembra, achando pouco. “Hoje em dia, não fazemos mais ocupações tão grandes. Foi loucura.”
Segundo Graça, essa também foi a razão do fim de políticas públicas, como os megassorteios de moradias que ocorriam em estádios de futebol em São Paulo até a década passada. “Hoje, com o Minha Casa Minha Vida, as novas construções precisam ser acompanhadas pelo planejamento de equipamentos públicos, especialmente creches”, diz. Também colaborou o programa Brasil Carinhoso, que prioriza o atendimento a cadastrados no Bolsa Família – ou seja, quem tem renda familiar de, no máximo, 140 reais por pessoa. “Aquela história de esperar anos por vaga acabou.”
Meses, no entanto, às vezes significam o drama de uma vida inteira. É o caso de Maria Aparecida Limeira de Araújo, 27 anos, que vive com as filhas na Ocupação Morro do Cipó, na zona oeste de São Paulo. Sua casa e a de outras 387 famílias terá de ser entregue em reintegração de posse já determinada pela Justiça e que aguarda apenas agendamento. “Vou ter de me mudar e perder a vaga que acabei de conseguir na creche”, conta.
Mãe adolescente, Maria Aparecida afirma que nunca conseguiu se dedicar muito ao trabalho por conta das meninas. A mais velha tem 10 anos. Para esta nunca houve creche. Quando ela começou na escola, já havia a segunda, que hoje tem 7 anos e só entrou na pré-escola aos 4. “Por um tempo trabalhei com limpeza. Ia me erguendo e não queria mais filhos, mas não podia fazer a laqueadura e engravidei da terceira”, lembra.
Essa terceira acabou de entrar em um Centro de Educação Infantil em fevereiro, aos 2 anos. Em novembro nasceu a quarta menina, de novo por “acidente”. “Pelo menos agora vão deixar eu fazer a laqueadura”, desabafa a mãe. Falta saber onde vão morar, para então buscar atendimento educacional e, quem sabe desta vez, recomeçar a vida. “Eu estava no último ano do Ensino Médio quando engravidei. Tinha muitos sonhos. Não sei se ainda tenho esperanças por mim, mas tenho de ter alguma por elas”, diz Maria Aparecida em uma fala tão desamparada que faz a aridez da creche improvisada da Ocupação Marconi parecer um oásis.

Publicado na edição 66, Carta Fundamental, de março de 2015