A cultura do estupro: o que a educação tem a ver com isso?

“ O professor como intelectual transformador deve estar comprometido com o seguinte: ensino como prática emancipadora; criação de escolas como esferas públicas democráticas; restauração de uma comunidade de valores progressistas compartilhados; e fomentação de um discurso público ligado a imperativos democráticos de igualdade e justiça social. Distintos dos intelectuais hegemônicos ou obsequiosos, cujo trabalho está sob o comando daqueles que estão no poder e cuja compreensão crítica está a serviço do status quo, os intelectuais transformadores assumem com seriedade a primazia da ética e da política em seu envolvimento crítico com os estudantes, administradores e a comunidade circundante. Eles trabalham, incansavelmente,  dedicados à promoção da democracia e melhoria da qualidade de vida humana.” . Henri Giroux
 
 
Por Gina Vieira Ponte de Albuquerque
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O caso recente da adolescente de 16 anos, vítima de estupro coletivo, colocou em evidência a expressão “cultura do estupro” e fomentou muitos debates pelas Redes Sociais. Felizmente vários segmentos da sociedade, sobretudo, movimentos organizados de mulheres, se insurgiram ao acontecido e manifestaram o repúdio a esta prática.
Para alguns a expressão “cultura” associada ao estupro causou estranhamento. Mas, a expressão cultura aqui trata do conjunto de crenças, leis, costumes, moral e conhecimentos apreendidos pelo indivíduo não somente na família, mas, também como parte da comunidade e da sociedade às quais pertence.
Assim, a cultura do estupro refere-se a um conjunto de práticas e crenças que geram uma espécie de tolerância e cumplicidade da sociedade em relação à violência sexual que é cometida contra as mulheres. Há uma ideia de que a mulher é desprovida de humanidade e que não tem o direito de exercer poder sobre o próprio corpo.
O pior de tudo é que há um acúmulo de pequenas práticas que vão se articulando para fortalecer esta cultura.  A título de exemplo, recentemente foi postado nas redes sociais um vídeo em que uma menina, em sala de aula, provavelmente, a pedido da professora, escrevia uma atividade no quadro. Ela estava de costas e um colega de sala levanta-se e bate nas nádegas da menina, tendo combinado previamente com um outro colega que gravasse a cena para que ele, posteriormente, pudesse publicar  pela internet. Para aquele garoto, o corpo da colega pode ser invadido por ele e, além de não haver nenhum sentimento de pesar ou de arrependimento pelo que fez, ele ainda sente prazer em tornar público o que aconteceu, como se houvesse do que se orgulhar.
Quando toleramos propagandas e programas de televisão onde a mulher é apresentada como mero objeto de satisfação sexual do homem, estamos ensinando às nossas meninas a buscarem isto como projeto de vida e ensinando os nossos meninos a perceberem as mulheres apenas a partir desta perspectiva.
Recordo-me, quando há cerca de 9 anos, um programa de humor na televisão explodiu, tendo os mais altos picos de audiência. Eu só descobri o programa pela narrativa dos meus alunos do 6º ano. Eles não falavam de outra coisa em sala de aula. Senti a necessidade de assistir ao programa para entender o porquê de ele chamar tanto a atenção. Fiquei estarrecida com o fato de que um dos fortes apelos era a apresentação de moças seminuas. Mas o programa ia além. As moças eram submetidas a toda sorte de humilhação. Eram agredidas, humilhadas, bolinadas, expostas e tudo isso era tratado como “diversão”.
A cultura do estupro começa aí, nessas pequenas práticas que são toleradas e vão se cristalizando como parte do comportamento das pessoas.  Este conjunto de práticas coopera para a percepção da mulher como um ser desumanizado e, portanto, passível de toda sorte de violação de direitos.
Mas, a cultura do estupro vai além, porque ela também age dentro da família quando homens pais, padrastos, irmãos, parentes das meninas sentem-se no direito de agredi-las sexualmente. Ela se manifesta quando rapazes sentem-se no direito de violar o corpo de meninas porque elas encontram-se embriagadas ou sob o efeito de drogas. A cultura do estupro se apresenta quando há, da parte da sociedade, uma permissividade e uma conivência com o estuprador e uma culpabilização das vítimas.
Há, ainda, como parte da cultura do estupro, a crença de que a violação do corpo de uma mulher não é um ato grave. Apesar das devastadoras consequências de um estupro, há homens, como Jair Bolsonaro, que evocam o estupro como um “prêmio” a ser dado para algumas mulheres, porque algumas o merecem.
E como fazer o devido enfrentamento a esta cultura? Como descontruir todas estas crenças postas como verdade e que conspiram contra a integridade de meninas e mulheres? No mundo ideal, para combater a cultura do estupro, teríamos uma sociedade consciente do seu papel na educação de nossas crianças e adolescentes e, comerciais, programas de televisão e músicas jamais reforçariam qualquer discurso ou prática que fomentasse a violação de direitos das mulheres.
Mas, infelizmente, este não é o caso. Temos um apelo para o consumo que atropela qualquer ética e prioriza a ideia de vender a qualquer custo. Como educadora que sou e diante do cenário em que vivemos, não vejo outro caminho a não ser a educação. É a partir da possibilidade de participar de práticas pedagógicas que dialoguem com a realidade em que se está inserido, que podemos ser capazes de superar o discurso do senso comum, romper paradigmas equivocados e construir outras identidades masculinas e femininas, capazes de rechaçar o machismo e todos os desdobramentos que ele traz.
E, é preciso dizer: não é uma escola supostamente sem partido que dará conta destas questões. Mesmo porque, a suposta “Escola sem Partido”, é, na verdade, uma escola cheia da ideologia dominante, pautada por concepções retrógradas, reacionárias e conservadoras de educação, e que estão a serviço de grupos hegemônicos que querem, a qualquer custo, sustentarem-se no poder.
Sonho com o dia em que todas as mulheres poderão ter o direito de ter uma vida livre de violência e desejo, tanto quanto, que todos os professores, em cada sala de aula de nosso país,  possam colocar-se como intelectuais transformadores, cientes de seu importante papel na formação de nossas crianças, adolescentes e adultos, sem que por isso sofram qualquer tipo de constrangimento, ameaça ou retaliação.
Gina Vieira Ponte de Albuquerque é professora da rede pública de ensino do Distrito Federal