Seja professor! (resposta a um artigo realista-desencorajador)

Na manhã de 5 de maio de 2015, um artigo publicado no caderno Opinião da Folha de S. Paulodeixou-me perplexo. O professor e filósofo Vladimir Safatle – da Universidade de São Paulo – emitiu, de forma clara e direta, alguns breves apontamentos para que seus alunos não sejam professores neste país. Ao ler seu texto, me vi na obrigação, enquanto professor e geógrafo formador de outros professores-cidadãos, de fazer alguns contrapontos diretos a suas ideias. Faço isso de forma respeitosa à opinião do aludido docente; a ideia aqui é a de uma franca reflexão conjunta ou de deixar outro viés para o pensamento coletivo.
No contexto do atual descalabro de conflito e agressão do estado do Paraná para com seus docentes, Safatle diz que “diante das circunstâncias, gostaria de aproveitar o espaço para escrever diretamente a meus alunos e pedir a eles que não sejam professores, não cometam esse equívoco. Esta ‘pátria educadora’ não merece ter professores”. Pois bem, defendo que os alunos de Safatle – que se formarão em Filosofia e professores pela prestigiosa USP -, bem como meus alunos, que se formarão geógrafos e também professores pela Universidade de Brasília, assumam a docência nas escolas, sim!
Uma nação democrática ou um bairro digno não se fazem sem conhecimentos da realidade. Não estaríamos em nossas universidades a contribuir na formação de professores-cidadãos se não fosse pelos mestres que tivemos desde a pré-escola e, certamente, não lecionaríamos nestas importantes instituições de ensino superior do Brasil não fosse o empenho e a qualidade desses mestres ou o esforço financeiro de cada contribuinte brasileiro em nos manter docentes, da forma que nos mantém e continuamos [alguns preferem ser tratados por pesquisadores, a ideia de professor parece aos mesmos minimizar o status do ofício]. A devolutiva deve ser dada nas escolas, aos filhos desses contribuintes – é nosso dever moral e ético, mas não a qualquer preço, certamente.
Safatle escreve que “um professor, principalmente aquele que se dedicou ao ensino fundamental e médio, será cotidianamente desprezado. Seu salário será, em média, 51% do salário médio daqueles que terão a mesma formação”. O professor e filósofo com quem dialogo cordialmente está correto no que afirma. Contudo, cabe ao próprio professor [a quem respondo, a mim e a todos os que lerem este artigo – ou não lerem] não desestimular, mas, ao contrário, apontar algum caminho para a mudança do quadro atual de ensino no Brasil, que realmente é trágico.
Logo, afirmo que é o momento para uma efetiva prática de mobilização nacional dos professores em todos os níveis, em pressão aos governos de estados e à União, para a melhoria de um quadro que não se restringe ao salarial, mas que atinge a dignidade física e psicológica dos docentes, que encaram uma sociedade calamitosa face a face, de violência material e simbólica no cotidiano escolar. Desestimular um futuro professor é remar contra a ideia da construção de um país menos desigual e potencializar os problemas já existentes. Uma boa saída seria o fechamento dos cursos de licenciatura ou uma mobilização nacional consciente e articulada em prol de um ensino mais digno, em todos os níveis, a envolver professores, pais e alunos?
No contexto da indiferença com a qual são tratados nossos professores no país, Safatle considera que “depois de voltar para casa sangrando por ter levado uma bala de borracha da nossa simpática PM, você poderá ter o prazer de ligar a televisão e ouvir alguma celebridade deplorando o fato de o país ‘ter pouca educação’ ou algum candidato a governador dizer que educação será sempre a prioridade das prioridades”. Também não se equivoca Safatle. Entretanto, esses fatos não justificam desencorajar os egressos de nossas universidades à docência.
O cenário da educação no país mudou, em certo grau, nas últimas décadas [notadamente, na última]; há dados sobre tais mudanças, que se fazem de maneira extremamente pontuais e ainda insuficientes, sobretudo quando vislumbramos o país em sua totalidade. Por mais que os noticiários denunciem, diariamente, a precariedade do ensino nas regiões mais pobres e a violência com a qual a educação é tratada no país, os incontáveis problemas ainda persistentes devem servir de estímulo para pensarmos no valor educativo, uma nova escola para um novo professor mais propositivo, mais otimista e mais engajado na formação de nossas crianças, para um real país “pátria educadora”.
Porém, a ação ou a mobilização coletiva se faz mais que urgente, para a alteração do quadro geral que criticamos, o qual reflete o descaso efetivo com a educação brasileira em todos os níveis, especialmente no fundamental e no médio. O professor universitário em geral não deve afugentar ou apartar as escolas ou os professores das escolas; seu papel é aproximar dos mesmos, potencializar o debate e as ações pela mudança educacional no país, trazer os professores e as escolas à universidade, sair de seu gabinete favorável à manutenção de bolsas individuais de pesquisas que o faz imóvel ou letárgico diante dos problemas concretos de nosso país.
Por fim, assegura Safatle que “diante de tamanho cinismo, você não terá nada a fazer a não ser alimentar uma incompreensão profunda por ter sido professor, em vez de ter aberto um restaurante. Por isso o melhor a fazer é recusar-se a ser professor de ensino médio e fundamental. Assim, acordaremos um dia em um país que não poderá mais mentir para si mesmo, pois as escolas estarão fechadas pela recusa de nossos jovens a serem humilhados como professores e a perpetuarem a farsa”. Como sugerir a abertura de um restaurante ao invés de ser professor, após a finalização de um curso superior bancado por indivíduos adultos que sonham em ter seus filhos em boas escolas? A saída para nossa educação é indicar a recusa a ser professor do ensino médio e fundamental? Sugere-se ser professor no ensino superior apenas, cuja realidade fora dos grandes centros não se diferencia das piores escolas nacionais? Como será acordar em um país sem escolas? Na verdade, dormiremos em sono profundo, com poucos clientes para muitos restaurantes.
Penso que seja dever do professor de nossas universidades públicas estimular os jovens futuros docentes a assumirem o lugar de uma crítica propositiva, de uma crítica emancipatória para a ação em prol de uma real “pátria educadora”, na qual o ensino-aprendizagem se faça prioridade na vida de cada indivíduo. A ação em massa, junto aos sindicados dos professores, pais e alunos, com a tomada dos espaços públicos de nossas cidades, faz-se urgente. Não há um único professor universitário, advogado, médico, engenheiro, geógrafo ou historiador que não tenham passado por algum engajado professor do pré-escolar, do ensino fundamental ou médio. O momento não é de desencorajamento, mas de estímulo à mudança prática e ao embate de diálogo aberto com aqueles que deveriam nos representar. Não há armamento que segure a coletividade [no caso, toda a classe de professores – sem elitismo] realmente unida e consciente de seus direitos e deveres. Nossas crianças, os adultos do futuro, merecem e precisam desse empenho atual.
Por um lado, a sociedade espera empenho dos estudantes dos cursos de licenciatura e de bacharelado lotados nas universidades públicas brasileiras, após anos de tributação e de investimento. Por outro, o Estado Absoluto parece esperar que a massa se revolte, mais tantas vezes forem necessárias, para respostas a demandas reais e urgentes nas instituições de ensino. Sejamos todos professores engajados na busca de outra educação, para um novo país. O mundo em metamorfose se faz pela sociedade em trânsitos ininterruptos. O estímulo deve continuar a ser dado, pelas bases do ensino. Sejamos professores, neste país, pelo entendimento dessa metamorfose.
Por Everaldo Batista da Costa*
* Everaldo Batista da Costa é professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)
(Do Portal Forum)