"Maria do Rosário e as Marias", artigo de Cristino Cesário Rocha

Maria do Rosário, atualmente Deputada do PT/RS não faz parte apenas de uma longa história de vida, em sua intimidade ontológico-cronológica. Ela reflete e traduz a feição de milhões de Marias, mesmo não tendo o nome Maria. Mulheres de todas as classes sociais e etnias ainda padecem de injúria, racismo, estupro, violências doméstica e de gênero e como se não bastasse, violência perpetrada por liderança política que deveria ser exemplo do cuidado, do respeito e da valorização da pessoa humana em sua integralidade e integridade.
Maria me parece um nome que remete à dor, ao sofrimento, ao desespero e à utopia de uma sociedade baseada no amor, na justiça e redistributiva se tomarmos por base a experiência de Maria, a Mãe de Jesus, ao ver seu único filho diante de uma condenação injusta. A morte de Jesus foi arquitetada pelos poderosos de seu tempo, de tal maneira que segmentos do povo foram conduzidos a acreditarem que Jesus seria culpado, posicionando ao lado dos opressores/as. Essa noção básica, ainda que não seja compartilhada por quem não acredita em Maria, tende a uma compreensão que se deseja comum: a de que sendo Maria ou não, todas as mulheres merecem viver dignamente, serem respeitadas e valorizadas na condição de pessoa, para além de questões religiosas, ideológicas e políticas.
Maria do Rosário, nome sugestivo que se pode parafrasear: tire o rosário de meus ovários. Essa expressão pode ser bem articulada por quem vive a via-crúcis na jornada da vida. Precisa também ser levada a cabo pelo sujeito-alvo de todo tipo de violência, a começar pelas mulheres, nessa particularidade, em que Maria do Rosário é mais uma Maria entre tantas que sofre por ser mulher e duplamente por ser mulher e defensora dos Direitos Humanos.
Em outra perspectiva, o rosário se bem vivido, na devoção mariana, deixa de ser rosário nos ovários em sua forma negativa, perversa e castradora para ser rosário da transformação, da luz no caminho, da força espiritual que ajuda na dinâmica da vida em curso. Tudo indica que haja contradições histórico-culturais (conflitos, dialeticidade, devir histórico…) não apenas na escolha de Maria do Rosário (luta, direitos humanos, dignidade da mulher…), mas também no próprio nome. Maria do Rosário abarcam dois significados: Maria, Mãe de Jesus, a também Maria das Dores, entre e presente em todas as dores, de todas as Marias. É do Rosário, porque em cada conta, conta-se uma história de vida, de luta, de amores, de direitos roubados e de violência multifacetada.
Maria Firmino dos Reis, escritora negra de meados do século XVIII traz ao debate brasileiro contemporâneo a similitude com a luta de mulheres brasileiras de qualquer etnia/raça. Prova-se que a luta das mulheres seja sem fronteira e sem restrição de temporalidade. Cada mulher que vivenciou e vivencia qualquer tipo de violência no Brasil e no mundo é referência de um grande desejo: a vida respeitada, digna e valorizada.
Quem não se lembra de Maria da Penha? Essa grande liderança não pode ser vista apenas como uma mulher que sofreu violência de quem se presumia ser seu
companheiro. Ela ajuda a fazer memória viva, atual e revolucionária do ser mulher como condição histórica capaz de promover a cultura de paz. As Marias de Nazaré, Firmino, da Penha e tantas outras devem ser lembradas com um coração aberto e uma práxis que transforma mentes e práticas de lideranças políticas e da sociedade civil colonizadas, neoconservadoras e nazifascistas.
Outra pessoa expressiva em seu tempo é Margarida Maria Alves, grande liderança na defesa dos direitos humanos, particularmente dos trabalhadores rurais em Pernambuco. Essa guerreira traz em seu nome a pétala da flor, a dor das Marias e a espada da luta. A margarida pertence à família das compostas, plantas que se caracterizam por possuir flores com um miolo redondo cercado por pétalas. Margarida Maria reúne coragem, ternura e mulher, além de ser sinal de vida em meio aos ataques violentos à dignidade humana.
Maria de Nazaré cantou o cântico revolucionário, o magnificat. Maria de Nazaré traduz uma condição de mulher discriminada em seu tempo, sendo mulher e
empobrecida no plano material. Sua condição como tal a situou, pela lógica da dor, a uma atitude diante da vida: colocou-se ao lado dos pequenos e oprimidos, não pelo fato de serem santos, mas pela tão grande desumanidade a que foram e são submetidos.
Ao dizer Ele dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despedem os ricos de mãos vazias, Maria ajuda a construir uma história que pode ser repetida em qualquer tempo, a história narrada por quem é vítima da violência perpetrada por instituições e indivíduos, no seio da história das civilizações. Ajuda também a pensar um programa de vida (política pública) que assegure e garanta às mulheres a integridade física, psíquica, cultural, política, intelectual e econômica.
Ao pensar em todas as Marias, de todos os tempos e as que não são Marias no nome, mas nas mesmas condições de vida, faz-se necessário pensá-las a partir de uma memória crítica, criativa, revolucionária e transformadora, cantando com Maria de Nazaré o cântico da indignação e da fé; revivendo o sonho e o enfrentamento de Margarida Maria; vivenciando com Maria Firmino a luta contra a escravidão moderna; assumindo a Lei Maria da Penha como instrumento de luta, fazendo a denúncia corajosa contra a violência doméstica, de gênero e contra a mulher, recortes distintos diante de uma mesma pessoa e destronar poderosos que atacam mulheres, no caso Jair Bolsonaro. Essas mulheres instrumentalizam a luta e reinventam uma nova história.
Diante do evento contra Maria do Rosário, que se estende a todas as mulheres e homens que desaprovam a atitude de Bolsonaro, nada melhor que levar a cabo um movimento em prol da cassação do mandato, em que se consumado revelará de qual lado estará a justiça brasileira. A justiça não pode ser cega, nem cúmplice com o atentado à vida.
É oportuno lembrar de fato também recente no Brasil, em que no dia 02 de dezembro de 2014 idosa6 e outras pessoas foram agredidas no Congresso Nacional.
Sendo mulher, idosa e aposentada, há que fazer uma discussão mais ampla sobre o evento. O que vem ocorrendo no Congresso Nacional é indício de que essa Casa que é pública está se tornando privada, de posse dos Deputados/as sob a proteção policial.
Os acontecimentos estão provando que a Câmara dos Deputados está sendo transformada em espaço vil, em que se atacam mulheres, idosas e quem se manifesta com o contraditório. Virou casa do pensamento único e da linguagem preconceituosa, ao ponto de exigir a retirada de assalariados que tentam obstruir a votação. Essa é a triste realidade que temos no Congresso Nacional, salvo as valiosas exceções. Há um duplo movimento que precisa ser desarticulado: voto de confiança aos Deputados/as e polícia legislativa aos assalariados. É preciso avaliar em quem votamos e lembrar-se desses fatos que não são episódicos.
É importante dizer que a manifestação clara e consciente da CUT, CNTE, Graça Souza e SINPRO-DF diante da situação de Maria do Rosário faz crer na diversidade pensada por esses segmentos, tomando para si a responsabilidade social, na defesa de direitos inalienáveis. É preciso, com certa urgência, crescer a indignação contra atitudes como a de Bolsonaro, para evitar o crescente ataque à pessoa humana partindo de lideranças políticas e que se estende à sociedade civil.
Ao se calar diante do fato, abre-se um precedente para um constante ataque contra a dignidade das pessoas, entre elas as mulheres, negros e homossexuais. O silêncio do judiciário e da sociedade civil pode fortalecer a falta de decoro parlamentar e evidenciar a banalização da pessoa humana e dos direitos humanos. Diante do ocorrido, toda a sociedade deve se indignar e exigir responsabilização do agressor, porque situação que coloca em risco toda a humanidade.
O Natal é uma criança que nasce nova em sua idade e antiga em seu anseio, sendo menino ou menina, pois o fato que move essa ideia não é o gênero, mas a
condição humana no mundo. Viver é sempre um dom, uma promessa e um encontro que transcende tempos, espaços e desejos, porque sublime em sua iniciativa divina.
O Natal e o Ano Novo que se aproximam devem ser celebrados com as Várias Marias que sofrem, lutam, sonham e realizam no amor. É tempo para forjar o
nascimento de uma nova sociedade livre, próspera e sem lideranças políticas que não representam a pessoa humana em sua dignidade. É urgente acreditar como fato valorizado e expressão significativa nas festas Natalinas o nascimento e crescimento de um movimento que inviabiliza qualquer atentado à vida e na particularidade dizer FORA QUALQUER LIDERANÇA POLÍTICA QUE AGRIDE VALORES E RASGA A CONSTITUIÇÃO DO PAÍS!
 
*Cristino Cesário Rocha é professor de Filosofia e Sociologia da rede pública de ensino do Distrito Federal.