Artigo: O Brasil posto de escanteio

 

Por Cleber Soares*
Mais do que palavras de ordem e pensamentos positivos precisamos de ação. O povo brasileiro ainda está atordoado com o tsunami ultraconservador que invadiu a conjuntura social, política e, sobretudo, econômica do país. Mas ainda vive sob as consequências positivas da tímida redistribuição de renda promovida pelos governos democrático-popular.
O processo de emancipação, ainda que lento e repleto de concessões às classes sociais mais elevadas e consideradas opressoras, foi interditado. A lenta, porém, gradativa inclusão educacional (e também social) experimentada nos governos democrático-populares do Partido dos Trabalhadores foi suspensa e colocada em andamento progressivo rumo à extinção.
Há avaliações que alertam para o fato de que estamos de volta à década de 1990. Outras, contudo, são mais firmes em assegurarem que estamos mesmo é de volta ao século XIX (confira matéria sobre isso aqui). Nem mesmo no período da ditadura militar houve uma ofensiva tão dura contra os direitos da classe trabalhadora como a que está em curso.
Mas a mim, parece-me, que o avanço ultraconservador vai muito além de duas décadas ou até de dois séculos atrás. Creio que está em curso um fazer político e jurídico inédito, que extrapola os limites do bom senso e da dignidade humana. Está em curso o desmonte dos valores humanos para privilegiar o lucro.
O Brasil foi tomando por uma gangue de degredados e, com ela, o despudor, a petulância e a ganância venceram a ética e todos os valores morais e fraternos para assegurar, de forma desrespeitosa e desumana, a corrupção e a lucratividade de alguns em detrimento da maioria, com a garantia explícita da impunidade.
O atrevimento e o despudor de corruptos, parlamentares e magistrados – financiados por grandes fortunas nacionais e internacionais e pelos donos do sistema financeiro, para os quais dinheiro e lucro valem muito mais do que a vida e o meio ambiente, e mais ainda do que a moral e a dignidade – têm provocado a resignação e inação no povo.
O brasileiro está inerte, imobilizado pelo discurso midiático que criminaliza as políticas em favor da população e inverte valores e concepções éticas ao denominar as políticas públicas favoráveis ao povo de instrumentos de corrupção ao mesmo tempo em que criminaliza políticos e entidades que lutam por um Brasil justo socialmente.
Parece que o país perdeu, de uma hora para outra, a capacidade de julgar o certo e o errado, o justo e o injusto, e também a potencialidade de ser uma grande nação e que a construção dessa Nação soberana, que andou a bons passos nos 13 anos de governo democrático-popular, não passou de um sonho impossível, que, agora, depara-se com um choque de realidade.
Trata-se de uma conjuntura difícil para quem tem orgulho de ser brasileiro/a e teima em acreditar que é possível construir a pátria livre sonhada por Antônio Conselheiro, Chico Mendes, Margarida Alves, Padre Josimo, Zumbi dos Palmares, Dandara e tantas outras guerreiras e guerreiros que lutaram contra a opressão e a tirania de homens e mulheres, lideranças sociais e políticas que fizeram da discriminação, do preconceito e da intolerância elementos centrais para suas ações por justiça na sociedade.
Caminhamos numa conjuntura difícil em que somos ludibriados e, seriamente, trapaceados pela mídia e por instituições públicas tomadas por políticos que vendem sua própria dignidade e comercializam direitos sociais e trabalhistas e o patrimônio público nacional. Por isso, o momento exige reflexão e ação.
Não há mais tempo de suspender as ações para pensar. É tempo de agir, pensar e movimentar-se: tudo ao mesmo tempo agora. Essa é a exigência central, imposta pela atual conjuntura. O momento exige autocrítica para não recorrermos em erros cometidos no passado e para identificarmos, para além dos nossos erros, os nossos acertos e dos adversários.
É importante identificarmos as pessoas levadas ou que se deixaram levar pelo discurso maniqueísta e, hipocritamente, moralista difundido pela mídia, legitimado por parte considerável do Judiciário, que também se vê financiado pelos setores rentistas e empresariais, e encaminhado pela maioria dos parlamentares do Congresso Nacional comprometida com interesses particulares e nada republicanos. Identificar tais indivíduos é fundamental, uma vez que essa atitude buscar a “desalienação” de parte considerável da população brasileira.
A elite, representada no Parlamento e no Judiciário, expropriadora da riqueza produzida pela classe trabalhadora, desdenha da capacidade do povo de compreender a realidade porque a enfrentaria se a compreendesse. Neste cenário, fortalecem-se discursos religiosos conservadores, que produzem o moralismo hipócrita, preconceituoso e intolerante.
Diante desse cenário desolador, creio ser urgente a reorganização de setores progressistas em favor da pauta que representa os anseios da maioria da população por cidadania e mais direitos. O golpe propõe mais exploração e menos cidadania, menos Estado nacional e menos democracia, mais plutocracia e mais intolerância.
Trata-se de um projeto de Estado para um país que deverá desempenhar mero papel de coadjuvante na política internacional, um país subalterno, tal qual o golpista que ocupa o Palácio do Planalto, com um povo empobrecido e com o complexo de vira-lata renovado. O projeto Ponte para o Futuro, do governo golpista, transforma o Brasil num país jogado para escanteio no cenário internacional.
O golpe destrói, dia a dia, e com a ajuda fundamental da mídia, o sentimento patriótico de ter orgulho de ser brasileira/o. Ressuscita a crença na falácia do sonho norte-americano, não realizado para boa parcela da população estadunidense, aprofunda o número de pessoas sem trabalho e amplia o lumpemproletariado.
O filósofo Karl Marx falava do lumpemproletariado, que sempre tendia a se somar à classe dominante opressora esperando alcançar vantagens. Era uma definição, inicialmente, ligada à parcela economicamente mais empobrecida da sociedade, mas, nos tempos atuais, há que se considerar como lúmpen uma parcela da classe trabalhadora, que, mesmo tendo meios para sobreviver, tem um nível de consciência crítica muito limitado, o que faz com que ela se alie à classe dominante contra sua própria classe.
Nessa situação, é fundamental promover a conscientização dos indivíduos, por isso é preciso manter um nível de informações constante a fim de alimentar a todos do conhecimento necessário para o enfrentamento diário a outros indivíduos que, mesmo sendo trabalhadores ou marginalizados pelo sistema capitalista, reproduzem a narrativa e a ideologia dominante do mercado.
A divulgação da informação produzida pelos setores progressistas, como os sindicatos e periódicos fora da mídia conservadora, é essencial para balizarmos a situação do país e fazermos o enfrentando no nosso espaço profissional, familiar e de amigos.  Precisamos construir novas ações e cada vez maiores para enfrentar as inverdades produzidas em gabinetes de políticos, em Redações de jornais e em estúdios de rádio e TVs conservadores.
Precisamos pôr em curso uma mobilização que, apesar da mídia, produza alterações no cotidiano das pessoas e do país. Entendo que, para isso, é fundamental também a participação em marchas, assembleias de categorias, atos unificados, movimentações nas ruas, sem descuidar, é claro, das ações de disputa de narrativas nas redes sociais.
O conjunto dessas ações tem potencial para derrotar o golpe, mas é preciso apresentar à sociedade um projeto que a beneficie. Precisamos de uma ação institucional que transforme em realidade o desejo de um país que promova cidadania, o respeito à diversidade em todas as suas dimensões humanas. E esse projeto somente setores progressistas e identificados com as lutas dos movimentos sociais e da classe trabalhadora são capazes de encampar e encaminhar.
Por isso, penso que a esquerda e os setores progressistas devem secundarizar eventuais diferenças estratégicas e, em alguma medida, as diferenças ideológicas, para que sejam criadas as condições de oferecer à sociedade um projeto capaz de atender aos anseios e materializar as esperanças externadas nas lutas e nas consciências indignadas, mas resignadas da classe trabalhadora.
Nessa perspectiva de conscientização e mobilização, é fundamental que cada militante e dirigente da classe trabalhadora e de movimentos sociais atuem de forma incansável, dialogando e debatendo com a sociedade sobre as consequências do projeto de país que está sendo imposto ao Brasil.
*Cleber Soares é professor da rede pública de ensino do Distrito Federal e diretor de Imprensa do Sinpro-DF.