A reforma trabalhista nos leva ao fundo do poço

A vitória de Macron nas eleições presidenciais francesas foi saudada com gáudio pelos mercados financeiros. O presidente eleito promete uma política econômica de direita e uma política social de esquerda. No cardápio da política econômica “de direita”, figura com sobranceria a reforma trabalhista. O propósito de Macron é o mesmo alegado pelo patronato tupiniquim: modernizar as relações de trabalho para impulsionar a competitividade e fazer frente aos desafios da globalização.

Nos últimos 40 anos, as práticas financeiras e as inovações tecnológicas que sustentam a competitividade da grande empresa globalizada detonaram um terremoto nos mercados de trabalho. A migração das empresas para as regiões onde prevalece uma relação mais favorável entre produtividade e salários abriu caminho para a diminuição do poder dos sindicatos e do número de sindicalizados.

Associados à robótica, à nanotecnologia e às tecnologias da informação, os mandos da financeirização e os mandonismos do “valor do acionista” desataram surtos intensos de reengenharia administrativa e de flexibilização das relações de trabalho. O desempenho empresarial tornou-se refém do “curto-prazismo” dos mercados financeiros e da redução de custos.

O crescimento dos trabalhadores em tempo parcial e a título precário, sobretudo nos serviços, foi escoltado pela destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria. O inchaço do subemprego e da precarização endureceu as condições de vida do trabalhador. A evolução do regime do “precariado” constituiu relações de subordinação dos trabalhadores dos serviços, independentemente da qualificação, sob as práticas da flexibilidade do horário, que tornam o trabalhador permanentemente disponível.

Ex-secretário do Trabalho dos Estados Unidos, Robert Reich denunciou o rápido crescimento dos empregos precários no país das oportunidades: “Na nova economia ‘compartilhada’, ‘do bico’, ou ‘irregular’, o resultado é a incerteza a respeito dos rendimentos e horas de trabalho. Esta é a mudança mais importante na força de trabalho americana ao longo de um século e ocorre à velocidade da luz. Nos próximos cinco anos, mais de 40% da força de trabalho americana estará submetida a um emprego precário”.

Já mencionei nesta coluna os livros The Jobless Future, de Stanley Aronowitz, e The Precariat, de Guy Standing.  

Aronowitz estuda as transformações no mercado de trabalho e estabelece a distinção entre trabalho e emprego. O trabalho para os remanescentes torna-se mais duro e exigente e desaparecem os empregos seguros, de longo prazo. Estão em extinção os empregos que proporcionam aposentadorias e pensões, seguro-saúde e outros. Com esses “privilégios”, vai de embrulho a esperança de uma remuneração mais generosa, à medida que o trabalhador avança na carreira.

Guy Standing faz uma distinção crucial entre a habitual insegurança dos assalariados e o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores. Standing afirma que a falta de segurança no trabalho sempre existiu. Mas não é a insegurança que define o precariado. “Os integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade em seus empregos e suas vidas.”

De forma ainda mais significativa, não possuem qualquer identidade ocupacional ou narrativa de desenvolvimento profissional. E, ao contrário do antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking socioeconômico, o precariado está sujeito à exploração e a diversas formas de opressão, por se encontrar fora do mercado de trabalho formalmente remunerado.

O que distingue o precariado é a sua trajetória de perda de direitos civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Não possuem os direitos integrais dos cidadãos que os cercam, estão reduzidos à condição de suplicantes, próximos da mendicância, dependentes das decisões de burocratas, instituições de caridade e outros que detêm o poder econômico.

O problema é, principalmente, o da insegurança na remuneração. Se houvesse políticas sensíveis para garanti-la, como por meio de uma renda mínima, poderíamos aceitar a insegurança no emprego. A insegurança ocupacional é de outra natureza, já que buscamos desenvolver uma identidade ocupacional, e muitos gostariam de fazer o mesmo.

O desemprego de longo prazo ampliou-se nos países centrais, sobretudo na Europa. Nos Estados Unidos, proliferou a precarização do emprego, fonte da queda de rendimentos dos 40% mais pobres e, portanto, do aumento da desigualdade.

Medidas como a nova legislação das terceirizações no Brasil intensificarão todas as formas de insegurança social e econômica. A essas forças negativas, os desvalidos da sociedade não podem responder com a demanda por ações compensatórias de outros tempos, porque nos mercados globalizados cresce a resistência dos poderosos e privilegiados à utilização de transferências fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade impositiva do Estado. A globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados e enriquecidos, desarticulou a velha base tributária das políticas do bem-estar, erigida na prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.

A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado por meio do mercado capitalista. A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência dentro das camadas “vencedoras e privilegiadas” das sociedades.

Não há dúvida de que o novo individualismo tem sua base social na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que prosperaram na era de predomínio do Estado do Bem-Estar. Hoje o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de “empreendedores” terceirizados e empobrecidos, criaturas das mudanças nos métodos de trabalho que precarizam e, ao mesmo tempo, escravizam.

Em entrevista amplamente divulgada, um conhecido tycoon da indústria brasileira defendeu a reforma trabalhista do “negociado acima do legislado”. Em suas elucubrações, o empresário advogou a supressão do horário de almoço para os trabalhadores como fórmula eficaz para impulsionar a produtividade. A feliz criatura da livre negociação deve manejar a máquina com a mão direita enquanto saboreia um sanduíche (de mortadela?) com a esquerda. Haja modernidade.

Aparentemente, os brasileiros vivem uma situação histórica em que a “grande transformação” ocorre no sentido contrário ao previsto por Polanyi (1980): a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade. As reformas trabalhista e previdenciária sugerem que a sociedade está flertando com as façanhas da economia do Mal-Estar.

A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da “deslegitimação” do poder administrativo e na desvalorização da política.

(da Carta Capital)